Não. O Brasil não é um país que não deu certo. O Brasil é o que é. Trata-se de uma junção de vários lugares e gentes em uma espiral histórica mais ou menos comum. A nação brasileira é um imaginário que tenta delimitar os vários brasis impondo-lhes unidade política sob o controle de forças majoritárias que dão o rumo e o ritmo dessa espiral.
É claro que essas forças são as vencedoras e seus projetos têm acolhida no conjunto da sociedade nacional. Nesse Brasil, a elite estabeleceu seus valores desde à colônia e, por meio de uma sofisticada pedagogia da violência, espraiou suas lógicas para as estruturais sociais.
O resultado desse longo processo de catequese das elites no Brasil é um país não cordial, não pacífico, não alegre. Aqui se naturaliza como designo divino as profundas desigualdades e se carnavaliza a máxima exploração da natureza e suas gentes. Nossa brasilidade não permite que não nos enxerguemos como somos, mas nos imaginemos naquilo que nunca fomos.
A pedagogia da colonialidade, tão viva entre nós, oculta as contas que não saldamos do passado, põem-nos fora da realidade e configura como absolutamente natural, portanto, sem qualquer constrangimento, o culto ao elitismo e o uso trivial da violência, do autoritarismo, do racismo, dos pequenos e grandes golpes cotidianos.
UMA HISTÓRIA REATUALIZADA
Não. A história não é um ciclo, não se repete. A história é uma marcha espiralada aberta entre passado e presente. Em suas curvas existem nós que dão forma e nos atrai para gravitar em torno do eixo maior, central. Esses nós são resultados da permanente simbiose entre novo e velho. Assim, na história, nada é novidade completa e nem pura repetição do passado.
Hoje, no Brasil, observa-se nitidamente esses nós na espiral histórica. O governo bolsonaro deixou nus os valores da elite: autoritarismo, violência, cultura do ódio contra pobres e pretos, máxima exploração das terras e das gentes. Isso não é completamente novo. Também não é o simples retorno ao passado, mas uma colonialidade revisitada, reatualizada, reafirmada.
Nem sempre cultivamos esses terríveis valores entre nós. Antes mesmo das terras que viriam ser Brasil, nossa espiral de existência era constituída por povos originários. Eles tinham uma cosmologia a explicar passado e presente, o homem-terra-natureza. Com as invasões europeias no século XV, houve uma radical interferência nesse curso histórico.
A ação violenta sobre o “novo mundo” resultou em profundas alterações em nossa espiral. Como se fossem naturais, passaram a nos compor a escravização, estupros, genocídios por armas e por doenças, imposições culturais e religiosas. Nunca houve uma colônia. Jamais se imaginou uma “civilização”. Nosso percurso histórico passou a ser moldado por um projeto econômico racista para máxima exploração das terras e dos povos.
MARCAS DECISIVAS
Esse quadro de extrema violência crava marcas tão decisivas que ultrapassam o tempo, sendo reatualizadas insistentemente ao longo de toda história do Brasil. Isso não é passado, é presente. É de nossa constituição a exploração, a escravização, as violências. Somos isso! É preciso enxergar! Fomos construídos à base do racismo, do ódio contra pobres, da ampla destruição humana e cultural, a começar com a dizimação dos donos das terras.
Aqui, três aspectos rápidos. O primeiro é que isso não foi um acaso, um processo natural, a evolução. Não! Trata-se de um projeto econômico e político e que deu certo para as elites. A destruição dos povos originários é quase que completa. Segundo: essa ação não atendeu apenas o mercado internacional, como foi no início. A consolidação da elite nacional se deu com a fiel reprodução da política de exploração e morte. Terceiro: sempre houve resistência!
Na nossa longa espiral histórica, violência, autoritarismo, racismo, ataque ao meio ambiente e a vida dos mais pobres foram mantidos e reatualizados. Colônia, Império e República e essas marcas continuam vivas independentemente de quem esteve ou está no poder. Trata-se de uma pedagogia estruturada, elitista e que se reatualiza a cada período e, principalmente, que se espraia como se fosse natural por todas as camadas sociais.
Sim, somos um povo que aprendeu a ser violento nas relações e isso faz parte de um projeto de nação. Com governo bolsonaro, de direita e extrema-direita, as elites e boa parte da sociedade brasileira reatualizam, com visibilidade, o exercício de uma cultura cotidiana autoritária, preconceituosa, odienta e racista. Isso não é novidade entre nós. Sejamos sinceros.
VIOLENTOS E PERVERSOS
Sim, somos um povo violento e perverso. Constituímo-nos perversos, aprendemos a ser cruéis. Não somos apenas indiferentes, mas desenvolvemos a terrível capacidade de externar e justificar, desejar e festejar mortes, assassinatos, crimes, violências.
No caso dos povos originários, é nítida essa reatualização permanente de colonialidade, desse aprendizado que vem desde à Colônia. O governo bolsonaro dá continuidade e amplia as lógicas de extermínio de nossos ancestrais. O presidente, com apoio, age na invasão da floresta com grandes fazendeiros, madeireiras e mineradoras. Nunca se destruiu tanto como agora a Amazônia, a Mata Atlântica, os povos originários, os quilombolas, os ribeirinhos.
Assim como ocorreu na Colônia, no Império, na República, nunca se assassinou tantas lideranças indígenas. Os bandeirantes de hoje são milicianos, garimpeiros, madeireiros, bancos, igrejas, traficantes, militares. Além dos assassinatos, existem os crimes por doenças contagiosas: mais de 300 nativos foram mortos pela Covid-19 somente em três meses.
É uma violência sem fim! Real e simbólica. Um genocídio permanente. E tudo na mais absoluta naturalidade, com apoio social e político, com a participação de instituições que deveriam agir em sentido contrário. Órgãos públicos estão entregues a militares e a neopentecostais. Insisto, isso não é novidade, somente um aspecto de um projeto colonial reatualizado.
Esse é o Brasil que se é. Nossa espiral histórica é essa, de uma colonialidade permanente, de uma apatia cumplice, de uma pedagogia que impede a empatia, a compreensão da humanidade. Como a espiral não é fixa, a questão é saber até quando essas marcas nos acompanharam.
Imagem (anja_schindler) gratuita em Pixabay




Uma resposta
Muita clareza e sensatez …