Nos primeiros meses de cada ano, até mesmo os cinéfilos mais declaradamente anti-estadunidenses rendem-se à chamada “safra das premiações”, filmes indicados aos principais prêmios hollywoodianos que começam a chegar às salas de cinema neste período. A despeito de estas premiações destacarem sobretudo o aspecto industrial da Sétima Arte, não raro há boas coincidências entre qualidade e valoração técnica.
As especulações sobre quem será laureado com a cobiçada estatueta dourada tornam-se inclusive um indicativo comercial, interferindo na bolsa de valores e nas apostas informais. Porém, convenhamos: isso é o de menos. O cabedal de filmes destacado pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas (A.M.P.A.S.) revela não necessariamente o que foi produzido de melhor ao longo daquele ano, mas sim quais tendências sinópticas estão engendrando debate e/ou fomento noticioso neste período.
As indicações para o prêmio Oscar deste ano foram anunciadas em 22 de janeiro de 2019 e, desde então, abundaram as polêmicas envolvendo a 91ª cerimônia desta premiação, que ocorre em 24 de fevereiro de 2019, um domingo. Além da informação de que não haverá um mestre-de-cerimônias geral – o que não ocorre desde 1971 – visto que o comediante escalado para tal função, Kevin Hart, foi desqualificado após publicações de teor homofóbico nas mídias sociais, houve o início de uma campanha de boicote contra a cerimônia, em razão de ter-se cogitado a possibilidade de apresentar alguns prêmios considerados “menores” durante os intervalos da transmissão televisiva. Isso não apenas gerou revolta como acentuou o potencial de reivindicação política a ser proferido durante os discursos de agradecimento e anúncio das categorias indicadas.
Exemplo: dentre os nomeados a Melhor Diretor, encontramos um militante negro, um grego com fama de misantropo, um polonês elitizado e um norte-americano que faz críticas ácidas e cômicas aos desmandos do presidencialismo republicano. Mas o favorito absoluto é um mexicano recentemente premiado, que se destacou com um filme predominantemente falado em espanhol (o restante é um dialeto indígena) e com temática intimista. Considerando-se os despautérios trumpianos envolvendo a construção de muro na fronteira com o México, visando à interdição da entrada de imigrantes provenientes deste país – o que foi considerado estouvadamente pelo presidente um caso de “emergência nacional” –, a confirmação deste favoritismo ressoará politicamente, e não apenas como uma festividade cinematográfica setorial. Espera-se tudo do discurso do vencedor, já merecedor de atenção no Globo de Ouro e outras premiações congêneres. É uma premiação de caráter sociológico, portanto. Nem que seja enquanto exposição de sintomas.
Dentre os oito indicados ao prêmio principal – o Oscar de Melhor Filme – encontramos alguns elementos importantes na investigação da crise narrativa enfrentada pelas produções hollywoodianas nos últimos anos, quando o mercado cinematográfico ficou saturado por regravações, continuações, derivações ou imitações propriamente ditas: o grande favorito é justamente o mexicano “Roma” (2018, Alfonso Cuarón), indicado a outras nove categorias e agraciado de maneira quase unânime pelas principais publicações sobre cinema nos Estados Unidos, que talvez só não seja premiado nesta categoria justamente por estar concomitantemente indicado a Melhor Filme em Língua Estrangeira. O melhor dentre os indicados é o britânico “A Favorita” (2018, Yorgos Lanthimos), que concorre a dez categorias, tal qual “Roma”. O menos interessante é a atualização de “Nasce uma Estrela” (2018, Bradley Cooper), empanturrado de clichês enredísticos, tanto quanto ocorre com outro favorito, “Green Book: O Guia” (2018, Peter Farrelly), que, ao menos, beneficia-se do ineditismo tramático e do enfoque contra o racismo, chaga infelizmente ainda basante prejudicial na sociedade estadunidense. Neste sentido, “Infiltrado na Klan” (2018, Spike Lee) é ainda mais incisivo, disfarçando de típico exemplar genérico para contrabandear um forte discurso de resistência combativa, característico de seu excelente diretor.
Além do quinteto supracitado, na categoria principal ainda concorrem: “Pantera Negra” (2018, Ryan Coogler), desde já célebre por ser o primeiro filme de super-heróis a ser cogitado como melhor filme do ano, bastante ovacionado por seus méritos em termos de representatividade actancial de um brilhante elenco negro; “Vice” (2018, Adam McKay), biografia tão feroz quanto cômica do ex-vice presidente Dick Cheney; e “Bohemian Rhapsody” (2018, Bryan Singer & Dexter Fletcher), filme marcado por vários problemas de produção e impedido de concorrer à categoria de Melhor Direção no BAFTA por causa de denúncias de assédio sexual envolvendo o seu diretor inicial. Recentemente, seu protagonista Rami Malek passou a ser noticiado como favorito à categoria de Melhor Ator, não obstante a interpretação arrebatadora – e também bastante laureada – de Christian Bale em “Vice”.
E, dentre as atrizes, a mais cogitada para ser premiada é a extraordinária Glenn Close, que até hoje nunca recebeu nenhum Oscar e que concorre por um filme ruim, indicado apenas nesta categoria, o xaroposo “A Esposa” (2017, Björn Runge). Merecido ou não, caso este favoritismo se confirme, haverá um inevitável e mui necessário discurso sobre empoderamento feminino, cláusula temática bastante evidente nas últimas cerimônias, em razão da ainda bastante injusta diferença de tratamentos entre homens e mulheres na indústria cinematográfica.
Reiterando o que foi dito no início, chega a ser menos relevante quem efetivamente será premiado, tamanha a expectativa depositada nos representantes discursivos contra o racismo, a misoginia e a xenofobia que podem ser valorizados nesta cerimônia. As notícias sobre o evento serão despejadas como uma avalanche a partir da madrugada desta segunda-feira vindoura, e nesta coluna não será diferente. Afinal, como diz o sociólogo especializado na cerimônia Emanuel Levy, o Oscar “é um dos poucos eventos, juntamente com os Jogos Olímpicos, a emprestar credibilidade à noção do mundo como uma comunidade supranacional”. Esta edição 2019 promete!
[continua…]