EnglishFrenchGermanItalianPortugueseSpanish
EnglishFrenchGermanItalianPortugueseSpanish

Acerca dos rituais festivos que antecedem as guerras (e que sobrevivem a elas): viva a pujança do cinema folclórico ucraniano!

Acerca dos rituais festivos que antecedem as guerras (e que sobrevivem a elas): viva a pujança do cinema folclórico ucraniano!

Numa das seleções nacionais para a sexagésima sexta edição do Eurovision [ou Festival Eurovisão da Canção, que ocorre na primeira quinzena de maio de 2022], a ucraniana Alina Pash – vencedora do concurso ‘Vidbir’, com a canção “Shadows of Forgotten Ancestors” – teve a sua candidatura interditada depois que foi descoberto que ela forjou documentos que tencionavam esconder uma viagem feita à Criméia, em 2015. Como trata-se de uma região controlada pela Rússia, desde 2014, suspeitou-se que a cantora fosse colaboradora de um país em conflito com o seu próprio. Trata-se de uma das várias conseqüências relacionadas às desavenças entre as nações ex-soviéticas…

Com a recente invasão da Ucrânia pelo governo russo, desencadeada em 24 de fevereiro de 2022, várias sanções começaram a ser planejadas pela comunidade internacional, a partir de mal-disfarçados interesses econômicos. Entretanto, isso passou a interferir também em âmbito cultural: além de ser impedida de participar do supracitado concurso musical, a Rússia foi excluída da Copa do Mundo de Futebol e alguns cineastas deste país estão tendo suas participações vetadas em festivais internacionais de cinema. Sem contar que eventos públicos sobre filmes e livros antigos da Rússia estão sendo cancelados, numa hipertrofia dos preconceitos advindos dos conflitos bélicos.

A discrepância geográfica entre a Rússia – com dimensões continentais (17. 098.240 km2) – e a invadida Ucrânia (com meros 603.548 km2) faz com que discursos ideológicos de caráter maniqueísta sejam disseminados através da imprensa, priorizando a vitimização atrelada à Ucrânia (enxergada por alguns como uma nação heróica). Por motivos óbvios, numa guerra não se convém falar em bons e maus, mas em intenções políticas menos destrutivas.

Aproveitando este gancho noticioso, notamos que, em sentido histórico, houve um predomínio controlador da Rússia em relação às demais regiões que estiveram forçosamente reunidas sob a tutela da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. No caso do cinema, por exemplo, vários cineastas foram perseguidos por não aderirem ao modelo realista em voga. Entre eles, o ucraniano Yuri Ilyenko [1936-2010], cujos filmes foram banidos em várias oportunidades, por serem considerados anti-soviéticos.

Consagrado enquanto diretor de fotografia do clássico “Os Cavalos de Fogo/ Sombras dos Ancestrais Esquecidos” (1965, de Sergei Paradjanov), Yuri Ilienko desenvolveu uma carreira paralela enquanto realizador, tendo recebido um surpreendente prêmio no Festival de Cinema de Moscou com seu longa-metragem “The White Bird Marked With Black” (1971). Um de seus filmes mais pitorescos, entretanto, é “The Eve of Ivan Kopalo” (1968), baseado em um conto do escritor Nikolai Gogol [1809-1852], famoso por suas tramas oníricas, antecipando uma versão eslava do surrealismo.

O título do filme não foi traduzido para o nosso idioma pois esta obra não estreou nem em Portugal nem no Brasil, visto que permaneceu internamente proibido por vários anos. “A Véspera de Ivan Kopalo”, entretanto, faz referência a uma festa equivalente às comemorações de São João Batista: segundo a tradição local, no feriado religioso da Noite de Kupala, há vários rituais de fé, como os saltos de fogueira por parte dos casais ou a flutuação dos arranjos de flores nos rios. No filme, enfoca-se o romance proibido entre Petro (Boris Khmelnitskiy) e Pidorka (Larisa Kadochnikova). Quando eles são flagrados aos beijos por Korzh, pai de Pidorka (Dmitri Franko), Petro é obrigado a fugir para um lugar distante, enquanto ela é entregue em casamento a um homem rico, por quem não é apaixonada. Desesperada, Pidorka envia seu irmão mais novo para contatar Petro, a fim de garantir que ele é a sua grande paixão.

Casualmente, Petro depara-se com Basavriuk (Yefim Fridman), uma espécie de demônio que apresenta-lhe a uma feiticeira, que conceder-lhe-á um tesouro. Para que obtenha esta riqueza, entretanto, Petro precisará regar a terra com o sangue de alguém e, num ímpeto passional, termina sacrificando Ivas (Aleksandr Sergienko), o irmão de Pidorka. De volta ao povoado dela, eles finalmente se casam, mas Petro é atormentado por sua consciência, pois assassinara uma criança. Quando é reduzido a cinzas, caberá a Pidorka a tentativa de ressuscitá-lo, buscando uma bruxa cujas lágrimas têm efeito curativo. Trata-se de uma típica narrativa fabular, portanto.

Não obstante a trama ser bastante fiel ao conto gogoliano, ela é eventualmente difícil de ser compreendida no filme, pois o diretor aproveita-se da mesma para levar a cabo experimentalismos formais assemelhados àqueles que eram efetivados pelos diretores da ‘nouvelle vague’ tcheca, conforme foi bem notado por um curador de sua obra. Há vários animais em cena (bezerros coloridos, porcos derrubados nas chaminés, galos brigando nas mesas) e vastas ilustrações floridas nas paredes das casas. Nalgumas seqüências, filtros vermelhos adicionam uma atmosfera infernal ao cenário, quando Basavriuk está em cena; noutros momentos, as mulheres que ajudam Pidorka na tarefa de recolher as cinzas de Petro são mostradas em posição oblíqua. Em mais de uma situação, o casal é flagrado como se estivesse flutuando, visto que a riqueza misteriosa e súbita de Petro atrai a cobiça de muitos ladrões, ainda que seu ouro seja tão protegido pelo feitiço mefistofélico quanto amaldiçoado por ele.

Trata-se de um conto de fadas para adultos sobremaneira frenético (e, a despeito de sua tragicidade, cômico) que reitera que a riqueza não traz felicidade. Apresenta a Ucrânia em uma versão medieval idílica, em que a sabedoria campestre redime os personagens e deixa em aberto a possibilidade de um final feliz, de um reencontro sobrenatural entre o casal apaixonado. Numa cena tão abrupta quanto inusitada, uma garota vestida como aristocrata francesa aparece falando russo, de maneira arrogante, demonstrando que o diretor é realmente crítico acerca das discrepâncias do regime soviético. É preciso ir além das falsas polarizações: bens culturais não devem ser reféns das irregularidades e equívocos das nações que os produzem!

Wesley Pereira de Castro.

Descarregar artigo em PDF:

Download PDF

Partilhar este artigo:

Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter
Share on linkedin
LinkedIn
Share on email
Email

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado.

LOGIN

REGISTAR

[wpuf_profile type="registration" id="5754"]