No último Festival de Cinema de Brasília, o filme “Temporada” (2018), do cineasta mineiro André Novais Oliveira, recebeu vários prêmios: além dos Candangos de Melhor Filme e de Melhor Atriz, para a protagonista Grace Passô, esta produção foi laureada nas categorias Melhor Ator Coadjuvante (para o intérprete de nome Russo Apr), Melhor Fotografia e Melhor Direção de Arte.
Em seu emocionado discurso, o diretor defendeu a necessidade de mais protagonismo negro nas telas e agradeceu o apoio da mãe, falecida recentemente e que aparece numa cena-chave do filme, sobre o qual precisamos falar mais a partir de agora…
Na primeira cena, encontramos a protagonista Juliana (Grace Passô), recém-chegada da cidade interiorana de Itaúna. Ela foi aprovada num concurso público para agente de endemias, na cidade de Contagem, que faz parte da região metropolitana do Estado de Minas Gerais. Afastara-se do marido – por situações que compreendemos melhor ao longo do filme – e vai acostumando-se gradualmente à conjuntura humana de seu novo trabalho: é ensinada a estabelecer um limite máximo de visitas domésticas por jornada e, no tempo livre agora disponível, interagirá principalmente com o espirituoso Russão. Permite-se apaixonar, mudar radicalmente o penteado, encontrar belezas inauditas em meio à destruição urbana instalada na cidade em que agora interage. Não há clímax no filme: cada seqüência é brilhante em si mesma, estendida no tempo de um realismo absolutamente humanizado. A crítica de orientação bazaniana ficou deslumbrada – com razão!
Num conjunto magistral de cenas, percebemos o quão merecido foi o prêmio recebido por Grace Passô: sua interpretação é minimalista e repleta de elementos pessoais. A cada instante, ficamos imaginando se ela realmente está interpretando, de tão plena que é a sua entrega actancial. Telefona inúmeras vezes para o seu marido, tentando compreender o motivo de seu afastamento, mas não obtém êxito. Ouve músicas populares, vai a festas, toma cafezinho por insistência das pessoas que visita durante o trabalho.
Num momento brilhante, quase tem uma crise de labirintite ao precisar subir uma escada. Não apenas consegue chegar ao pavilhão superior da residência onde investigava a incidência de possíveis focos da dengue como, ao beneficiar-se de uma vista privilegiada da cidade, reflete, ao lado do morador, sobre as mudanças desencadeadas pelo movimento incessante do progresso imobiliário. Um filme que nos obriga à reflexão sobre as nossas próprias convivências vicinais, portanto. Belíssimo!
Na seqüência protagonizada pela mãe do diretor – que oferece um bolo à visitante – Juliana analisa as fotos de família espalhadas pela casa. Noutra situação, ao averiguar o preço de um armário, numa loja de móveis, encontra por acaso uma fotografia antiga, com uma dedicatória de amor escrita a caneta. “Temporada” é um filme sobre os afetos hodiernos, sobre as transformações íntimas do cotidiano.
E sobre as modificações externas também: no início, Juliana apresenta o cabelo extremamente alisado, mas, ao ser convencida a acompanhar um amigo de trabalho num curso para cabeleireiros, é convencida a mudar radicalmente de penteado. Chama ainda mais atenção pela beleza tipicamente negra, porém hesita em conhecer um novo namorado. O título do filme faz jus ao seu caráter sazonal: o tempo simplesmente passa. A vida, aproveita-se.
Destacando-se pelas sutilezas e coroando uma filmografia destacada pela flutuação de caracteres entre documentário e ficção, “Temporada” beneficia-se também da excelente trilha musical de Pedro Salles Santiago, bastante sinfônica em seu acompanhamento de eventos do dia a dia: às vezes, chove; às vezes, é necessário carregar material de uma sede a outra. Às vezes, é necessário trabalhar aos sábados, vacinando cachorros; às vezes, o salário não é suficiente, e precisa-se pedir dinheiro emprestado a parentes.
O tempo corre lento em “Temporada”, mas no ritmo de seus personagens, assaz respeitados em suas peculiaridades. Lembranças e anedotas particulares são inseridas na narrativa, que encerra-se casualmente, no meio de uma crise de risos. A realidade urbana é apresentada em seu píncaro beatífico. Prêmios absolutamente merecidos!
Voltando ao discurso emocionado de seu diretor – que é negro – um dos méritos mais altissonantes deste filme tem a ver justamente com o protagonismo racial defendido pelo realizador, naturalizado em sua grandiosidade corriqueira, em suas epifanias triviais. Grace Passô firma-se como uma das atrizes mais valiosas do cinema brasileiro contemporâneo, ofertando-nos uma composição interpretativa marcada por gracejos contínuos, mas também atravessada por cicatrizes emocionais evidentes.
Uma metonímia da lógica explicitada no discurso de seu realizador, que bradou, textualmente: “viva o cinema negro brasileiro. Por mais protagonismo negro nas telas. E ele não!”. Em seu filme, tal verve política – radicalmente oposta aos discursos de ódio associados à eleição do atual presidente brasileiro – é plenamente atingida: “Temporada” é uma jóia cinematográfica que merece ser vista e debatida. Brilhante!