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A lusofonia invisível no Brasil (parte final)

A lusofonia invisível no Brasil (parte final)

Esse é o último texto de nossa coluna em A Pátria que trata da investigação realizada entre 2014 e 2017 na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e que resultou em uma tese de doutorado. Nesse espaço, uma vez por semana, discuti uma parte importante desse trabalho, onde busquei saber como o Brasil noticiou as temáticas da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) nos primeiros 20 anos dessa entidade (1996-2016). Não é demais lembrar que o Brasil é parte dessa comunidade. A investigação ficou centrada nas notícias publicadas nos dois maiores jornais brasileiros, Folha de S.Paulo e O Globo.

Essa tarefa de investigar, para fazer sentido à proposta geral da tese que tinha como objetivo pensar e enxergar o visível para experimentar o invisível no jornalismo, exigiu conhecer o conteúdo manifestado em duas décadas de notícias sobre a comunidade lusófona no Brasil e submeter todo esse volume noticioso (corpus) à análise crítica da história, observando-se as conexões semióticas. Porém, antes disso, foi fundamental refletir sobre a fabulação em todas das identidades, do Nós e dos Outros, tendo em vista que tratava de uma comunidade da qual os seus membros têm profundas e enraizadas relações histórico-constitutivas entre todos.

A análise realizada nesse longo percurso me encaminhou para enxergar dois modos de apagamento, de ação para o invisível. No regime de visibilização em O Globo e na Folha de S.Paulo existe o que chamei de invisibilização por ausência, que é a quase que completa inexistência de registros sobre a comunidade lusófona em duas décadas nas páginas dos jornais. Encontrei somente quatro pequenas notícias por ano, em média, sobre a CPLP no Brasil, o que faz essa comunidade não existir, sendo esses raros registros engolidos na avalanche cotidiana de informações publicadas. Nessas condições, é praticamente impossível que leitores cotidianos desses jornais produzam algum tipo de lembrança sobre CPLP.

Os 80 registros com pequenas notícias sobre a comunidade lusófona que encontrei na Folha e os 81 em O Globo são, ao mesmo tempo, o todo visível do regime de visibilização sobre essa comunidade no Brasil, e a própria materialização que denuncia a invisibilização, a ação para o invisível. Esse pequeno volume de notícias em 20 anos é uma prova contundente a revelar mais o invisível do que o visível. 

Entretanto, ao interrogar esses rastros de notícias sobre a CPLP nos dois jornais em duas décadas, ao vasculhar esses textos verbo-visuais, percebi que emergiam ali vestígios sociossemióticos e históricos que ajudaram a responder uma questão: diante dessas pequenas e raras notícias sobre a comunidade lusófona, o que não se vê aqui? Em outras palavras, mobilizando aqueles vestígios de textos verbo-visuais, pude indiciar o porquê de a comunidade lusófona no Brasil ter sido objeto de uma permanente invisibilização nos dois jornais em duas décadas. As raras notícias visíveis revelavam, assim, a segunda forma de apagamento, a invisibilização por presença, outro modo da experiência do invisível construído pelos media.

As raras notícias em O Globo e a Folha de S.Paulo não trataram a CPLP como uma comunidade identitária. Em alguns momentos apenas, ela era um bloco econômico pobre e problemático porque ser composto majoritariamente por povos negros e africanos, e aqui desejada toda força de ódio, preconceito, repulsa e combate. Assim, os poucos registros nos jornais denunciam que o não reconhecimento da CPLP no Brasil tem fortíssimas fundamentações ideológicas, históricas, identitárias, racistas e classistas, tendo os jornais como grandes porta-vozes da elite brasileira.

No pouco contato visível do Brasil com a comunidade lusófona, os jornais o destacaram em uma condição de liderança, de comando, de superioridade, exigindo uma postura neocolonial, em que os países africanos e o Timor Leste seriam meros ativos políticos a serem negociados no mercado internacional. Isso remete diretamente ao comércio das peças, às levas de escravizados, objetos vendidos em ruas, praças e mercados públicos no Brasil Colônia. Nesse caso, o Outro estava visível como moeda de troca para valorizar o senhor. Mesmo quando os jornais trataram as nações da África como “primos pobres”, essa marcação de parentesco servia somente para delimitar a diferença classista dos brasileiros, os “primos ricos”. 

Nos registros em O Globo e na Folha há, até mesmo antes da institucionalização da CPLP, uma associação permanente e insistente entre pobreza, miséria, crimes, drogas, corrupção, ditadura e os países lusófonos da África e o Timor-Leste. Esses vínculos foram muito mais visíveis e reforçados com a implantação, no Governo Lula, de uma política externa que aproximava o Brasil da comunidade sob alegação identitária e dívida histórica para com África.

Entretanto, angolanos, cabo-verdianos, guineenses, guinéu-equatorianos, moçambicanos, são-tomenses e timorenses estiveram invisíveis nas notícias sobre o acordo ortográfico e na relação de compadrio empresarial entre Brasil e Portugal. Todavia, os povos africanos e timorenses ganharam ampla visibilização nos poucos registros, com presença cativa nas páginas criminais de O Globo e da Folha, quando esses jornais se empenham para impedir a possibilidade de “livre circulação” no espaço lusófono, na verdade, de chegada ao Brasil. 

A invisibilização por ausência e, também, a partir da presença de um visível repetido e insistente ao longo de 20 anos, possibilitou perceber que o regime de visibilização dos jornais sobre essa comunidade propõe uma experiência jornalística do invisível. Esse processo vai da completa inexistência do Outro, com episódios de indiferença e de não reconhecimento, e que esteve atravessado em todo percurso, até a tentativa de fixar uma profunda diferença intransponível entre Nós e “o africano”, negro e pobre, criminoso nato, aquele que rejeito, combato e recorro à polícia se ele aproximar.

Nessas condições, a experiência do invisível nesses jornais é uma ação de força contra a ideia da própria comunidade, de um lugar em que seus pares têm deveres e obrigações recíprocas. O Globo e a Folha cultivaram e reforçaram valores radicalmente immunitas, onde os membros da comunidade não se reconhecem, não aceitam ter deveres e nem partilhas, e buscam uma imunidade de rejeição e de confronto.

Essa proposta de experiência jornalística identitária de exclusão, diferença e controle sobre o Outro, no caso a CPLP negra, pobre, africana não deve ser tomada por surpresa. A Folha de S.Paulo e O Globo compõem um segmento empresarial no Brasil que se utiliza do jornalismo para o exercício de poder oferecer ao público um mundo baseado em valores de um liberalismo arcaico capitalista e que, cotidianamente, imprime em suas páginas os traços autoritários de nossa herança colonial a partir da lógica eurocêntrica, do dominador. Assim, a invisibilização da CPLP em O Globo e na Folha não foi um lapso. A ausência reiterada é uma ação política, econômica, identitária e racista, e está amparada na história desses dois jornais.

Essa herança colonial autoritária, baseada na relação de mando/obediência, de superior/inferior, de civilizado/primitivo, de branco/negro esteve sempre visível nas poucas notícias, no Outro a ser controlado e criminalizado, a exemplo do atrasado “caipira” e de “mentalidade criolla”; dos africanos que querem ter os mesmos direitos que os portugueses têm no Brasil; da rota de tráfico de drogas que sai da África; do medo das doenças e, por isso, o uso de repelentes; do “Brasil, Portugal e as ex-colônias portuguesas na África”; do “português fraco”; entre outros exemplos de colonialidade.

Em raras brechas, geralmente em falas diretas, seja do presidente Lula seja em algum registro na editoria de Cultura, a escravidão e a dívida histórica do Brasil para com África surgem, o que poderia ser uma porta de entrada para discussões identitárias. Contudo, os dois jornais logo classificam essas falas históricas, identitárias, de dívidas não saldadas com os povos escravizados, como de “tom emocional”, afetivo, de um passado distante, sem amparo no mundo contemporâneo e globalizado.

Na medida em que os jornais propõem uma experiência narrativa que não reconhece a comunidade lusófona, portanto nem se reconhece nela, aprisionando-a em camadas profundas e impedindo-a de fazer memória, O Globo e a Folha manifestam o desejo de apagamento identitário da “mentalidade criolla” no Brasil, uma opção racista e que tem endereço nos vínculos com África. Não reconhecer, apagar, repelir, combater o Outro que nos constitui é uma ação de força de atores políticos movida pelo medo de que Nós nos enxerguemos com o Outro, e eles como e em Nós

Colocar em permanente invisibilização, seja por ausência seja por presença, angolanos, cabo-verdianos, guineenses, guinéu-equatorianos, moçambicanos, são-tomenses, timorenses, galegos e até portugueses, como foi a proposta de experiência jornalística na Folha e em O Globo ao longo dos 20 anos da CPLP, é uma ação identitária que impede a ideia de comunidade. Mais ainda: essa é uma ação que busca, principalmente, apagar a possibilidade de que enxerguemos a Nós Mesmos, de que acertemos as nossas contas históricas, de que reconheçamos as nossas dívidas, não para com um Outro, oposto e distante de nós, mas para com aquele que habita desde sempre Entre Nós.

A experiência do invisível talvez impeça que reconheçamos a Nós Mesmos. Por isso, no caso específico da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, a invisibilização construída pelos dois maiores jornais brasileiros não está em África e no Timor-Leste, o que fica mais invisível é o próprio Brasil e o Nós Mesmos.

Imagem de uso gratuito em Pixabay

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