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A importância de gritar “eu sou!” em imagens – e de ser, através de ações cotidianas!

A importância de gritar “eu sou!” em imagens – e de ser, através de ações cotidianas!

No Brasil, por muito tempo, a data em que se instigava debates contra o racismo e reflexões sobre a importância da cultura negra era o dia 13 de maio, quando comemora-se a Abolição da Escravatura, ocorrida em 1888. Essa data, entretanto, possui uma série de problemas estruturais: primeiro, porque reserva a responsabilidade ativa à Princesa Isabel [1846-1921], convertendo-a numa espécie de “salvadora branca”; segundo, porque, em muitos sentidos, a escravidão continuou a ser praticada no Brasil, visto que não houve a devida integração à sociedade para as pessoas libertas. E muitos outros aspectos poderiam ser elencados aqui…

Em resposta às limitações celebrativas do dia 13 de maio, foi sugerida a conversão em feriado do dia 20 de novembro, data em que foi assassinado o líder revoltoso Zumbi dos Palmares [1655-1695], muito mais relevante, em termos reivindicantes e identitários. Precisamente no mês de novembro, ocorre uma mostra de filmes promovida pelo instituto Nicho 54, “que trabalha pela promoção e valorização dos negros brasileiros no audiovisual”. E essa empreitada merece ser amplamente exaltada, conforme se segue:

Ocorrida entre os dias 05 e 14 de novembro de 2021, a terceira edição do Nicho Novembro teve como tema norteador a pergunta “para qual normal voltaremos?”. Além de várias atividades formativas, a seleção de filmes deste festival inseriu as questões raciais em conjunturas mais complexas, visto que o racismo não surge como componente apartado de outras posturas preconceituosas: os discursos de ódio e malevolência são imbricados, justificando a si mesmos através de exclusões atravessadas. É o que percebemos nas sinopses dos filmes…

Além dos longas-metragens “Eyimofe (Esse é o Meu Desejo)” (2020, de Chuko Esiri & Arie Esiri) e “Libório” (2021, de Nino Martínez Sosa), respectivamente vinculados à Nigéria e à República Dominicana e bastante elogiados nos festivais de que participaram, o Nicho Novembro chamou a atenção pela extraordinária seleção de curtas-metragens, dos quais três merecem ser qualitativamente enfatizados: primeiro, o nigeriano “Lagarto” (2020, de Akinola Davies), que recebeu um prêmio especial do Júri no Festival de Sundance 2021. Na trama, uma garotinha que é expulsa de uma aula de ensino religioso por ser excessivamente questionadora penetra nos ambientes reservados de uma igreja pentecostal. Lá, ela depara-se com uma movimentação tão exorbitante de dinheiro que isso antecipa o assalto que ela e sua família sofrerão. Tudo sob o olhar condescendente das imagens de um Jesus Cristo branco e colonizador…

O segundo dos curtas-metragens é o brasileiro “Como Respirar Fora d’Água” (2021), dirigido por Júlia Fávero e Victória Negreiros. A protagonista, Janaína (Raphaella Rosa), é uma nadadora tão obcecada por seu próprio desempenho, que esquece até mesmo de descansar. Após a insistência de sua treinadora, ela consente em voltar para casa, mas, ouvindo música, não percebe que estava sendo vítima de uma violenta abordagem policial. Quiçá confundida com um rapaz – por causa de seu cabelo curto – e tratada imediatamente como suspeita – por causa dos preconceitos envolvendo a cor de sua pele – Janaína é agredida, e precisa recorrer ao seu pai (Dárcio de Oliveira), também policial, para voltar para casa. Traumatizada por causa do que sofreu, Janaína começa a questionar se precisa submeter-se aos clichês de feminilidade que a sociedade lhe impõe, ao passo em que começa a descobrir situações delicadas, relacionadas à profissão de seu progenitor…

Muitíssimo bem urdido, no que tange às questões interseccionadas entre gênero, raça e classe social, o roteiro deste filme evita os julgamentos maniqueístas: por mais machucada que esteja, Janaína depara-se com um dilema familiar que a leva a pensar nos problemas reiterados por aqueles que amamos. Ela recebe apoio incondicional de sua namorada (Giovana Lima), mas, ao encontrar um fardamento sujo de sangue, angustia-se ao imaginar seu pai envolvido em agressões tão ou mais violentas que aquela que sofreu. O desfecho devolve-nos à questão titular. Muito contundente!

Por fim, o terceiro dos curtas-metragens elogiados nesse texto é o cubano “Aquilombados” (2021, de Damián Sainz Edwards – vide fotograma), que parte de uma situação concreta e contemporânea para denunciar múltiplas perseguições históricas. No início, a explicação do título através de um letreiro sobre as fugas que ocorriam durante o período escravagista. Um personagem, de nome Orestes (Reynier Pérez Morales), procura desesperadamente o seu irmão Julián (Csar Dominguéz), em meio a uma floresta. Ouve barulhos de tiros e a encenação leva-nos a crer que estamos no período colonial, e que os personagens estão justamente refugiando-se em quilombos. Orestes não reconhece esta palavra, entretanto, e um arguto artifício de montagem leva-nos a reconhecer aquele lugar como um “ambiente de pegação”, onde homossexuais reúnem-se para relacionamentos fugazes. Julián, inclusive, está no meio de uma felação, quando é flagrado por seu irmão. Seu parceiro sexual vai embora e compreendemos, no diálogo, as intenções protestantes do diretor: variegados tipos de escravidão perduram após as abolições oficiais!

Estes são apenas alguns dos títulos contidos no catálogo do Nicho Novembro que, tudo indica, continuará a ocorrer nos anos vindouros. Enquanto for possível reivindicar, protestar, gritar em prol do auto-reconhecimento, que assim seja. Vale a pena mencionar o que apregoa a militante Angela Davis, no livro “Mulheres, Raça e Classe”, em que demonstra ser imprescindível que o feminismo esteja vinculado ao antirracismo e à luta de classes: “o trabalho que escravas e escravos realizavam para si mesmos, e não para o engrandecimento de seus senhores, era cumprido em termos de igualdade. Nos limites da vida familiar e comunitária, portanto, a população negra conseguia realizar um feito impressionante, transformando a igualdade negativa que emanava da opressão sofrida como escravas e escravos em uma qualidade positiva: o igualitarismo característico de suas relações sociais”. Cada qual à sua maneira, os filmes exibidos no Nicho Novembro versam exatamente sobre isso!

Wesley Pereira de Castro.

 

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