Em todos os textos dessa coluna, procuramos deixar bem nítida a defesa de que os povos que falam em português apresentam extraordinárias condições sócio-históricas para que se reconheçam como comunidade. Todavia, como também já apresentamos, a ideia de comum para uma unidade lusófona supera a lógica institucional. Por isso, tratamos da possibilidade de realizarmos uma experiência communitas, uma comunidade iluminada pelas diversas lusofonias e que se baseia em dívidas e obrigações recíprocas entre todos os seus membros.
A ideia de communitas vem do filósofo italiano Roberto Esposito (2004, 2012), que também desenvolveu uma profunda reflexão sobre a necessária tensão que está implicada nessa ideia de comunidade e que faz surgir nela mesma uma perspectiva dialética. Em outras palavras, na medida em quem reconhecemos a possibilidade de uma experiência communitas também passamos a acolher o seu par dialético, a condição immunitas.
De um lado existe aquele que busca viver a ideia de comunidade como uma construção coletiva, de um amplo dever partilhado entre seus membros, um sujeito que podemos chamar de comunitário. Ao seu lado, também está aquele que se sente desobrigado, isento, que não assume qualquer ônus, dívida, que não cultiva nenhum sentimento de solidariedade, que não se sente obrigado à doação recíproca. Este último é o imunitário, que diferente do comunitário busca se proteger, estabelece distância e elimina o Outro. Em resumo, “a communitas está ligada ao sacrifício de uma compensação, enquanto a immunitas implica no benefício da dispensa” (Esposito, 2012, p. 30).
Em um trabalho específico sobre a condição immunitas, esse autor (2005) afirma que nem ela nem a communitas podem ser julgadas às pressas, por meio da moralidade, do bem e do mal, e não devem ser associadas aos contrastes positivo e negativo. Não é disso que estamos a tratar. Uma é o fundo da outra, uma é o objeto da outra e vice-versa. “Em última instância, a imunidade é o limite interno que corta a comunidade dobrando-a sobre si próprio em uma forma que resulta às vezes constitutivas e destitutivas” (Esposito, 2005, p. 19).
Vamos dizer de uma outra forma o que está acima: se a communitas fosse plena, sem qualquer freio, sem as forças opostas, tornar-se-ia uma experiência totalitária em que a subjetividade seria sufocada e anulada. Assim, o immunitas tem até uma função importante em jogo de forças na medida em que coloca em tensão a própria ideia de comunidade, de modo que a communitas não pareça absoluta e aniquile o indivíduo.
No entanto, a depender dos contextos e das forças políticas, das relações sociais que estão em jogo, dos interesses econômicos em disputa, a ênfase para a immunitas poderá ser muito mais iluminada e infinitamente maior. Como as tensões são assimétricas, isso é perfeitamente plausível. Ou seja, podemos ter a experiência subjetiva, o Eu inflado, o indivíduo imune, desobrigado e que vai agir para sufocar, impedir e destruir quaisquer possibilidades para a communitas, para a experiência comunitária.
Vejamos o que acontece no mundo globalizado. Os exemplos são cada vez mais nítidos de xenofonia, racismo, levantamento de muros e cercas, escravização de imigrantes, assassinatos nas travessias de oceanos, medidas de proteção contra os pobres, o crescimento de partidos e movimentos fascistas. Ora, tudo isso é parte de uma cultura profundamente imunitária. O sujeito immunis está em alta. As forças immunitas apresentam um transitar confortável e seguro por meio da lógica global.
A ideia de um indivíduo-mundo, sem quaisquer amarras locais e nacionais, aquele que acredita ter o mundo ao alcance das mãos, e que o sucesso é obra tão somente do seu esforço pessoal – cada um por si – constitui condições privilegiadas para a vivência imunitária. O indivíduo, imaginariamente globalizado, sente-se plenamente desobrigado com o Outro e até com os seus pares. Ele não tem qualquer sentido de dívida, de responsabilidade nem para com os mesmos, aqueles que parecem iguais a ele, estando desligado de “todo laço social, de todo vínculo natural, de toda lei em comum” (Esposito, 2012, p. 43).
Percebemos, assim, que na lógica da globalização as forças immunitas estão bem à mostra, mas elas também estão presentes naqueles movimentos políticos que usam da retórica patriótica, xenófoba, de resgate das tradições, das identidades nacionais, da fabricação de pertenças a partir da exclusão e da expulsão do Outro, um inimigo eterno. Nesses casos, os immunis surgem quando defendem que são apenas os nacionais, os homens brancos e heterossexuais que são os únicos e verdadeiros donos da história, sem a menor possibilidade de aceitar as diferenças, os laços históricos e a fraternidade.
Além disso, esses grupos político-identitários de direta e de extrema-direita são assumidamente immunitas porque as suas principais bases de ação são de afastamento, de combate e de eliminação de Outro, do imigrante, do negro, do homossexual, do islâmico, das mulheres, de povos que também os constituem e que ocupam os mesmos espaço que eles. Essas forças e organizações imunitárias não agem diretamente contra a ideia de uma comunidade em si, mas deformam o conceito, transformando-a em uma fortaleza militar que acolhe e protege os seus, os puros, expulsando e eliminando os impuros, apagando qualquer vínculo social, político, cultural e histórico que os aproxime do Outro.
Por isso, sugerimos que há dois modos de ênfase das forças immunitas agindo sobre a experiência communitas: um, que é majoritário, voltado à globalização, de um cidadão do mundo desligado e desobrigado com a comunidade; e outro, em crescimento e consolidação, que busca uma ilusória segurança identitária em grupos fechados, nacionalizados, com retóricas e práticas xenófobas, classistas e racistas, em que a desobrigação com o Outro e a cultura do ódio contra a diferença têm maiores visibilizações.
Como a comunicação social, as mídias e o jornalismo participam dessa tensão dialética entre communitas e immunitas, claro, com ampla vantagem para a condição imunitária? Sobre a ideia de uma comunidade lusófona prevalecem forças para o seu reconhecimento e vivência communitas ou ela está regida pelas ações immunitas? No próximo texto dessa coluna vamos buscar discutir essas questões.
Referências
Esposito, R. (2005). Immunitas: protección y negación de la vida. Buenos Aires: Amorrortu.
Esposito, R. (2012). Communitas: origen y destino de la comunidad. Buenos Aires: Amorrortu.