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“Eu não sou criança! Eu nunca fui, nem mesmo quando eu era…”: das dificuldades de se condensar mais de cinco décadas de vida em duas horas de filme!

“Eu não sou criança! Eu nunca fui, nem mesmo quando eu era…”: das dificuldades de se condensar mais de cinco décadas de vida em duas horas de filme!

Quando o anúncio de que “Homem com H” (2025, de Esmir Filho) entraria no catálogo brasileiro da plataforma Netflix, em 17 de junho de 2025, foi divulgado nas redes sociais, muitos espectadores ficaram atordoados. Afinal, por mais interessante que isto seja, no que tange à divulgação do filme, ele ainda estava em exibição nalgumas salas de cinema do país. Surge o paradoxo apreciativo: defender uma maior janela entre os lançamentos cinematográficos e a sua posterior disponibilização nos serviços de ‘streaming’, na torcida para que as bilheterias de filmes brasileiros sejam mais rentáveis, ou comemorar a acessibilidade doméstica de uma obra que, sendo mui hábil em suas concessões ficcionais, é inegavelmente contributiva em relação a questões contemporâneas sobre identitarismo (vide, como exemplo, o sucesso de um adolescente maranhense que, ao dançar a canção-título, numa gincana escolar, ficou bastante conhecido no Brasil)?

Enquanto o supracitado dilema segue em discussão nos circuitos críticos, elogiemos a efetividade directiva do paulistano Esmir Filho, responsável pelo divertidíssimo curta-metragem “Tapa na Pantera” (2006, co-dirigido por Mariana Bastos e Rafael Gomes) e por longas-metragens de cariz existencial, como o pouco compreendido “Os Famosos e os Duendes da Morte” (2009). Nesta obra mais recente, ele manipula com precisão as armadilhas das cinebiografias, não incorrendo num registro “chapa-branca” de um artista ainda vivo. Ney Matogrosso confessou-se bastante satisfeito com o que viu em tela, aliás, agradecendo por não ter sido representado de maneira excessivamente condescendente.

Interpretado de maneira intensa pelo pernambucano Jesuíta Barbosa, que reproduz com estudada maestria alguns cacoetes oculares e corporais do artista, Ney Matogrosso é mostrado, aqui, como alguém que sempre quis ser livre, a despeito da extrema repressão de seu pai militar, Antônio (Rômulo Braga). Na infância, Ney é comumente espancado, mas irrita o pai por não chorar durante as surras. Expulso de casa, ele alista-se na Aeronáutica, a fim de superá-lo num campo familiar, mas logo será descoberto por causa de seu timbre vocal tão agudo quanto insigne. E, de maneira um tanto evasiva, mas assertiva em seu poder de síntese, acompanhamos as diversas fases musicais deste magnífico intérprete…

A abertura do filme, ao som de “Homem de Neanderthal”, faixa inicial do álbum “Água do Céu — Pássaro” (1975), é muito bonita ao demonstrar que a identificação entre o cantor e o “animal indefinido” com que ele se identifica desde a infância, quando passeia por um cenário fluvial, o fascinará até a maturidade, sobretudo quando ele descobre que o nome do rio que banha um terreno que ele adquire chama-se, justamente, Mato Grosso. Ainda que vejamos pouco da época em que o cantor era o vocalista da banda Secos & Molhados, compreendemos rapidamente os motivos que levaram o artista a prosseguir em carreira solo, visto que a sua exuberância era criticada por quem tinha receio de evocar o homossexualismo. Lembrando que ele ousou apresentar-se vestindo indumentárias consideradas andróginas no auge da fase mais severa da ditadura militar no Brasil. Igualmente céleres são as exposições relacionais entre Ney Matogrosso e outros artistas, bem como a sua aceitação tardia da canção que intitula o filme, “Homem com H”, que ele temia que não fosse bem aceita, já que ele não era nordestino, conforme parecia requerer a cadência rítmica da canção. Na prática, sabemos que isso não foi empecilho para o sucesso da canção, uma das mais imediatamente associadas ao artista, até hoje.

Na segunda metade do filme, o enredo assume uma faceta telenovelesca (no melhor sentido para o adjetivo), enfatizando os seus romances com o também cantor Cazuza (vivido de maneira sobremaneira convincente por Jullio Reis) e com o médico Marco de Maria (Bruno Montaleone, ótimo), que foi o companheiro mais duradouro de Ney Matogrosso, até o seu falecimento, por conta dos efeitos colaterais da AIDS. Inteligentemente, o diretor insere contextualizações musicais em cada um dos períodos registrados (pensemos na eficaz metonímia proposta por “O Mundo é um Moinho” de Cartola, no que tange ao falecimento do pai do biografado), de modo que este filme se revela muito mais apreciável que outras biografias recentes de cantores brasileiros, como “Elis” (2016, de Hugo Prata) ou “Meu Nome é Gal” (2023, de Dandara Ferreira & Lô Politi). Como o filme agora pode ser visto e revisto sem a necessidade de pagar ingresso — para muitas pessoas, a assinatura de um serviço de ‘streaming’ é economicamente viável —, recomendamos que ele seja comentado e difundido, enquanto demonstração benfazeja de um trabalho biográfico que não adere à autocensura típica de produções semelhantes. Que o diga a maneira naturalizada com que são inseridas as cenas de sexo. Para finalizar, a celebração inevitável: o octogenário Ney Matogrosso é um dos artistas mais impressionantes do Brasil!

Wesley Pereira de Castro.

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Fonte da imagem disponível em: https://s3.sa-east-1.amazonaws.com/hiveos.production/24aef403-70e6-4217-ad47-e048056f2bdb

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