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“Quando a gente chama muita atenção, ninguém percebe que, na verdade, estamos escondendo alguma coisa”: à guisa de um exercício crítico

“Quando a gente chama muita atenção, ninguém percebe que, na verdade, estamos escondendo alguma coisa”: à guisa de um exercício crítico

Numa célebre corruptela discursiva atribuída ao historiador e crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes [1916–1977], costuma-se declarar que “o pior filme brasileiro é preferível ao melhor filme estrangeiro”. A justificativa para esta fórmula pretendida de adesão espectatorial — que pode ser ouvida no média-metragem “Tem Coca-Cola no Vatapá” (1975, de Pedro Farkas & Rogério Corrêa) — está relacionada à invasão descarada de filmes norte-americanos no mercado exibidor brasileiro, afastando o público do país de representações que permitiriam um melhor reconhecimento nacional, em termos de identificação tipológica: conforme comentou um jurista, em determinada ocasião, sabemos mais sobre as emendas constitucionais estadunidenses que sobre as leis brasileiras, de tanto que assistimos a requisições legislativas em tramas hollywoodianas. Eis um exemplo de como a nossa identidade é moldada por padrões forâneos de sociabilidade!

Partindo-se deste pressuposto, permitimo-nos o direito de encetar um exercício crítico: se formos convidados a analisar um filme brasileiro que, em sua feitura, apresentasse um rol alarmante de defeitos, como poderíamos defendê-lo, sem incorrer em falsidades publicitárias? A consideração das dificuldades de produção, associada a um baixo orçamento e a múltiplos empecilhos de difusão, surge como dominante neste processo, a despeito da incorrência em convenções narrativas sobremaneira problemáticas em seu automatismo. Falemos sobre “Os Três Reis” (2023, de Steven Phil), portanto.

Filmado na pequena cidade paulista de Santa Branca, a noventa e um quilômetros da capital do Estado, São Paulo, “Os Três Reis”, em menos de uma hora e meia, conta a história de três irmãos que se reencontram por ocasião do estado agravado de saúde da mãe Alzira (Lucélia Maquiavelli), que sofre um Acidente Vascular Cerebral (AVC). Ela é cuidada por um dos irmãos, Gaspar (Giovanni Venturini), que é mecânico e portador de nanismo. Ele se esforça para unificar a família, mas um dos irmãos, o mais velho, Baltazar (Murilo Meola, também co-produtor), está preso por ter assassinado um homem, enquanto o outro, Belchior (Rodrigo Dorado), o mais novo, reluta em aparecer em casa, por se sentir hostilizado por sua orientação sexual. Ele mantém um relacionamento amoroso com um colega de trabalho, sendo que ambos trabalham como enfermeiros no hospital de pronto-socorro local. Quando Alzira pede que eles entreguem uma carta ao pai, o cantor Roy Alves (Eduardo Araújo), que vive num município distante, o trio de irmãos suprime provisoriamente as suas incompatibilidades, e empreende uma fuga que faz com que eles redescubram memórias compartilhadas, até então sufocadas pelos traumas de abandono…

Ao lermos esta sinopse expandida, percebemos que há muitos temas interessantes no filme, mas a trama acelerada e o roteiro entulhado de inverossimilhanças desperdiçam a potência existencial e/ou reconciliatória da obra. A maneira estapafúrdia com que Baltazar consegue fugir dos funcionários penitenciários que o vigiavam, durante a sua visita ao hospital, é uma das inúmeras demonstrações de inépcia da direção na condução do enredo, que peca também pela maneira displicente com que os personagens se locomovem por diferentes espaços (num determinado momento, eles estão num concerto sertanejo em Ribeirão Preto e, de repente, surgem num enterro em Santa Branca, mesmo quando são perseguidos pelos carcereiros) e pelas conotações machistas de um desfecho em que Roy explica que abandonou a sua família por conta de uma traição de Alzira. Isto só piora quando o roteiro insere, de maneira forçada, as ações e diálogos de duas mulheres rapidamente subjugadas aos anseios dos personagens masculinos: Joana (Lílian Menezes) esposa atual de Roy, que não sabia que ele tinha filhos, e Stephany (Maria Eduarda Machado), uma cantora que fica imediatamente atraída por Baltazar, a ponto de desfazer a dupla caipira com a sua irmã.

Se, por um lado, “Os Três Reis” possui um chamariz inequívoco ao apresentar o público brasileiro ao cotidiano de cidades pouco mostradas nos filmes, por outro, ele não aproveita elementos interessantíssimos do enredo, como o fato de os três irmãos serem batizados com os nomes dos reis magos que presentearam Jesus Cristo, à época de seu nascimento. Não obstante conhecermos alguns detalhes das vidas de cada um deles, as interpretações são estereotipadas e exageradas, exceto no que tange à ótima caracterização do mui talentoso Giovanni Venturini. A quase sujeição ao nonsense (vide o reencontro, em tom de bravata, com o tio dos irmãos, de quem eles furtam um automóvel, que fora concedido por um sultão a Roy, quando ele fizera um concerto na Turquia) é outro aspecto do filme que, se fosse intencional, dotaria a produção de um charme legítimo. Do jeito que ele foi finalizado, precipitado e clicheroso em seus motes familiares, o que fica é a sensação de decepção, acentuada pelo modo vendável com que se dispõe a trilha musical e os planos aéreos que sobrevoam as cidades que serviram de cenário. Esteará em pouquíssimas salas, enquanto filmes tão precários quanto (ou eventualmente piores), distribuídos por multinacionais, ocuparão diversos cinemas. Conseguimos provar algum ponto, aqui?

Wesley Pereira de Castro.


Fonte da imagem: divulgação efetuada por assessoria de imprensa, Trombone Comunica.

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