Quem acompanha essa coluna sabe que temos revelado aqui, a cada semana, a construção, através dos dois maiores jornais brasileiros (Folha de S.Paulo e O Globo), de um aprofundado processo de invisibilização da comunidade dos países de língua portuguesa no Brasil.
Existem três ângulos dessa ausência nos primeiros 20 anos da CPLP: o primeiro, da própria entidade nos jornais; o segundo, o apagar do Brasil nas notícias sobre essa comunidade, e o terceiro, que é o dos países africanos e do Timor-Leste nos registros sobre a CPLP.
Das poucas notícias na Folha de S.Paulo e em O Globo nas duas primeira décadas da CPLP, elegemos uma que revela, a nosso juízo, a profundidade desse processo de invisibilização de que estamos tratando, porque ela denuncia uma comunidade que nunca existiu.
Relembremos que a CPLP foi instituída em 17 de julho de 1996. Mesmo de maneira superficial, os dois maiores jornais brasileiros noticiariam a criação da CPLP e, ao longo dos anos, sempre surgia alguma notícia sobre ela, até porque os presidentes do Brasil viajavam para os países lusófonos. O debate sobre acordo ortográfico também foi motivo para lembrar da lusofonia.
Entretanto, na edição de 12 de julho de 2003, sete anos depois da CPLP criada, a Folha de S.Paulo noticia que o presidente Lula propunha a criação de um “bloco de países de língua portuguesa” e que ele seria chamado de CPLP. Percebeu? Esse registro é a confirmação presente da mais categórica ausência dessa comunidade entre nós, no Brasil. Não se trata de um lapso, um mero esquecimento, uma confusão entre organismos. É apagamento mesmo. O pior é que não existiu antes de 2003 e nem depois daquele ano.
O fato é que, ao longo dos anos, a invisibilização dessa comunidade conformou e agregou valores históricos, políticos e morais que estão vivos na política editorial desses jornais. Essas condições não permitiram que a CPLP fosse lembrada, nem mesmo pelo jornal quando o presidente falou de um novo “bloco de países de língua portuguesa” em 2003.
Uma prova dessa ação – isto é, não foi um lapso – é que o autor da notícia em 2003, da criação da CPLP, é o jornalista Clóvis Rossi, exatamente o mesmo repórter que estava em Lisboa, em 17 de julho de 1996, e cobriu a criação oficial da CPLP, também pela Folha de S.Paulo.
Um parêntese curioso: a Folha somente começou a usar a sigla CPLP em títulos das notícias em 2010, na edição de 22 de julho (“Adesão de ditadura gera críticas à CPLP”). Ao contrário, em O Globo, essa sigla tinha sido usada em um título em 1996, antes mesmo da institucionalização da entidade, em 30 de março (“José Aparecido é favorito para liderar a CPLP”).
Voltemos a notícia da nova “criação” da CPLP em 2003. Além de prova inequívoca desse longo minuto de silêncio em torno da comunidade lusófona, esse registro da Folha de 12 de julho de 2003 tratou da visita de Lula a Portugal. Além de ser recebido pelo primeiro-ministro Durão Barroso, ele também se reuniu com “empresários portugueses”. O texto destaca a ação do presidente brasileiro em propor criar a CPLP que, para o jornal, é “mais um bloco no jogo diplomático brasileiro”. Esse aspecto transforma a comunidade em moeda para o Brasil negociar na política externa, assim como fez o Governo FHC. Segundo o repórter: o novo bloco possibilitará ao Brasil “melhor negociar com as nações ricas do Norte”.
Assim como em 1996, para a Folha e O Globo, o “bloco” é uma forma de o Brasil mostrar força política e econômica internacional. Um trecho do discurso de Lula nesse registro é revelador: “A CPLP, talvez mais que nenhuma outra instância, mostra o quanto Portugal e Brasil podem realizar juntos. Afinal, não nos faltam o que poderiam chamar de vantagens comparativas – a língua, a cultura, a afinidade natural” (Folha, 12/07/2003, p. 10). Onde estão as demais nações da CPLP? Não existe nenhuma referência aos países lusófonos da África e nem ao Timor-Leste.
Vale destacar que a relação de “parceria” entre Portugal e Brasil foi construída, na fala do presidente brasileiro, por meio da língua, da cultura e da “afinidade natural”. Seriam, então, afinidades naturais a relação metrópole/colônia, os sistemas de exploração, em especial o mais violento deles, a escravidão indígena e africana? Há aqui um profundo e longo minuto de silêncio. É por isso que os países africanos lusófonos e o Timor-Leste estão invisíveis aqui.
Concretamente, boa parte das notícias nos dois maiores jornais brasileiros configura essa ausência por meio da presença desses vestígios. Por exemplo, na maioria dos registros que tratou do acordo ortográfico há um enorme “vazio” inicial de participação dos países da África lusófona e do Timor-Leste. Essa ausência e o reforço de uma suposta competência de Brasil e Portugal são nítidas demonstrações de um regime de visibilização jornalística construído para uma comunidade em que africanos são maioria, mas estão invisíveis. Todavia, os mesmos africanos vão ganhar o campo do visível acerca dessa discussão ortográfica apenas para serem culpabilizados pelo fracasso da unificação da escrita lusófona.
Na próxima semana, acrescentaremos em nossa análise, além dessas profundas ausências, um outro aspecto central na invisibilização da comunidade lusófona no Brasil, a indiferença.
Imagem: fabiowanderley – imagem gratuita para uso – Pixabay