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“Mas, afinal, quem vive?”, ou o que pode ser dito sobre uma obra que fala tudo?

“Mas, afinal, quem vive?”, ou o que pode ser dito sobre uma obra que fala tudo?

No dia 12 de junho de 2022, quando comemorou-se o Dia dos Namorados no Brasil, a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz escreveu um texto em seu perfil no Instagram, recomendando um de seus filmes favoritos, “Blade Runner, o Caçador de Andróides” (1982, de Ridley Scott). Pouco menos de um mês antes – mais precisamente, em 17 de maio de 2022 – falecia o compositor da trilha musical, o grego Evángelos Odysséas Papathanassíu, conhecido mundialmente como Vangelis [1943-2022]. Temos motivos suficientes para rever esta obra-prima?

Aprioristicamente, não há mais nada a ser acrescentado às variegadas análises que foram feitas sobre este clássico inicialmente subestimado da cinematografia estadunidense. Quando foi lançado, ele resultou num fracasso de bilheteria, o que foi ressignificado a posteriori, quando veio à tona a versão particular do diretor, sem a narração em ‘off’ e o final feliz imposto pelos produtores. Os críticos ocuparam-se em diagnosticar a genialidade da obra, que converteu-se em objeto de culto. E, quanto mais revemos este extraordinário filme, mais descobrirmos algo sobre ele – e, por extensão, sobre nós mesmos…

Em seu breve mas contundente texto, a antropóloga supracitada diz que “trata-se de uma projeção futurista, entre outros, do fracasso da sociedade ocidental”. Ela acrescenta que chora sempre que revê o filme, o que é justificado pelo fato de ele ser “um elogio à ancestralidade que cada um carrega consigo, e à memória afetiva que guardamos e criamos também”. E enfatiza: se, quando o enredo foi imaginado, 2019 parecia um futuro distante, para nós, este ano fatídico já é passado, mas, ainda assim, “é parte dessa distopia cujo futuro já chegou”. E precisamos refletir sobre isto!

Interessantemente, o diretor Ridley Scott, proveniente da Publicidade, intuiu estes aspectos, fazendo com que a direção de arte futurista também remetesse ao passado [vários exegetas notaram que os figurinos do casal central remetem a “Casablanca” (1942, de Michael Curtiz), por exemplo]. A trama é baseada num romance de Philip K. Dick [1928-1982], a quem o filme é dedicado, e a expressão titular adveio de um tratamento que o escritor ‘beatnik’ William S. Burroughs [1914-1997] fez a partir de um romance homônimo publicado em 1974 por Alan E. Nourse [1928-1992]. Em sua acepção original, o terno ‘bladerunner’ [literalmente, ‘corredor de lâminas’] referia-se a um contrabandista de suplementos médicos. No filme, diz respeito a um policial especializado em caçar e matar (o termo correto seria “aposentar”) replicantes, que são andróides criados para parecerem “mais humanos que os próprios humanos”. No Brasil, entretanto, “caçador de andróides” virou gíria para zombar de heterossexuais que, eventualmente, fazem sexo com travestis!

Supondo que alguém ainda não tenha visto este filme – se não viste, busque-o imediatamente; se já o viste, reveja –, o protagonista é Harrison Ford, naquele que ele considera um dos papéis mais difíceis de sua carreira. Ele interpreta Rick Deckard, e recebe a incumbência de caçar e “aposentar” quatro andróides que fugiram de um motim espacial. Na diegese, os replicantes são utilizados na execução de trabalhos escravos em colônias localizadas fora da Terra, visto que o nosso planeta é habitado apenas por quem não teve condições de pagar a viagem espacial. Por isso, vemos tantos imigrantes nas regiões depauperadas e chuvosas. Angustiados para conseguirem mais vida, pois descobrem que foram programados com tempo de existência assaz limitado (apenas quatro anos), estes andróides voltam para a Terra, onde são considerados ilegais. Porém, as ordens recebidas por Deckard são conflitantes: às vezes, é-lhe dito que fugiram seis replicantes, e não apenas quatro. E este é apenas um dos múltiplos mistérios que foram melhorados após a disponibilização da versão do diretor, que conta com uma seqüência-chave, na qual Rick sonha com um unicórnio. O que isso quer dizer? (Re)vejam o filme!

Os diálogos do filme são icônicos, como quando a personagem Rachael (Sean Young) é submetida a um teste de perguntas e respostas e, ao lidar com um questionamento sobre a sua reação a uma foto de mulher nua numa revista, ela dispara: “tu queres saber se eu sou uma replicante ou lésbica?”. As frases proferidas pelo líder dos replicantes, Roy Batty (Rutger Hauer) são amplamente poéticas, como quando ele diz para um fabricante de olhos que viu coisas terríveis durante o seu aprisionamento nas colônias extraterrenas ou quando, ao constatar a finitude da existência (sobre)humana, lamenta que “todos estes momentos perder-se-ão no tempo, como lágrimas na chuva”. Os rompantes de criatividade roteirística são magnânimos, como o reaproveitamento genético de um personagem que sofre de envelhecimento precoce ou as condições que demonstram que as lembranças de uma determinada personagem advêm de implantes projetados por outrem. Sem contar a supremacia da fotografia de Jordan Cronenweth: a seqüência em que Zhora (Joanna Cassidy) é perseguida por Rick é uma das mais belas e tristes de todos os tempos!

Confirme o título deste arremedo de artigo interroga, não há muito o que acrescentar a algo que já é artisticamente completo. Por outro lado, estas linhas têm a intenção explícita de referendar a indicação cinéfila de Lilia Schwarcz, a fim de instigar um hábito que sempre recomendamos nesta coluna: a revisão de filmes, o retorno aos clássicos, a necessidade de descobrir aspectos inauditos em algo que renova-se a cada contato. Sendo assim, mais que gritarmos que é urgente revisitar esta preciosidade da ficção científica, suplicamos: aproveitem com louvor cada instante consciente de vida!

Wesley Pereira de Castro.

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