“Antigamente é que era bom” ou “antigamente a vida era melhor”. São frases que comumente ouvimos por aí. Em geral, vale destacar a imprecisão (antigamente quando? Antigamente onde? Era melhor para quem?). Mas no Brasil existe uma grande chance daqueles que usam essas frases estarem a se referir à ditadura militar. Muitas pessoas hoje de meia-idade se mostram saudosas dos anos de chumbo e defendem que a vida era melhor naquela época. Mais do que isso, em um típico exemplo de “saudade do que não se viveu”, há jovens que repetem esse discurso sem nunca terem vivido os tempos de repressão da ditadura. Esse saudosismo de um passado idílico, romantizado, misturado a uma grande desconfiança a respeito das instituições, mais especificamente das instituições democráticas, é um dos fermentos que fizeram crescer uma extrema-direita protofascista que alçou ao poder no Brasil o presidente Jair Bolsonaro.
Aqui vamos analisar a crise das instituições públicas e a desconfiança nas instituições democráticas, mas com um foco bem específico, a América Latina e, mais ainda, o Brasil, com destaque para o papel do neoliberalismo na crise e na desconfiança. Para isso, partimos principalmente da leitura dos artigos “O papel da sociedade e das instituições na definição das crises políticas e quedas de presidentes na América Latina”, de André Luiz Coelho Faria de Souza, e “A desconfiança nas instituições democráticas”, de José Álvaro Moisés, ambos cientistas políticos. A ideia é partir dos dados e proposições dos textos para acrescentar novas proposições.
Enquanto Souza (2013) analisa crises políticas e quedas antecipadas (impeachments) de presidentes na América Latina no período imediatamente posterior à redemocratização, concluindo que o pior cenário para um mandatário seriam manifestações nas ruas pedindo a sua saída do poder ao mesmo tempo em que conflitos institucionais estivessem acontecendo” (SOUZA, 2013, p. 227) (algo que se viu no Brasil com Collor e, posteriormente à publicação do artigo, com Dilma, mas também em outros países, como a Bolívia, com as renúncias de Lozada e Mesa, todos que enfrentaram oposições nas ruas e nas instituições, como o congresso/parlamento); Moisés (2005) se concentra na ampla e contínua relação de desconfiança que os brasileirso têm com as suas instituições democráticas, ainda que, de modo geral, digam majoritariamente que apoiam a democracia. O autor se vale de diversos modelos teóricos para explicar a erosão da confiança dos cidadãos.
Da ditadura ao neoliberalismo
A experiência latino-americana de redemocratização, a partir da década de 70 e, no caso específico do Brasil, no meado da década de 80, tem uma característica peculiar: ela coincide com outros dois fatores geopolíticos e econômicos globais que influenciaram negativamente o bem-estar e a qualidade de vida dos trabalhadores, direta e indiretamente. O primeiro deles é a ascenção do neoliberalismo [1]. A doutrina, fortemente influenciada pelas ideias da Escola de Chicago [2], começou a ser posta em prática já em meados dos anos de 1970, no Chile comandado pelo ditador Augusto Pinochet. Mas foi na década de 1980, principalmente por meio do presidente americano Ronald Reagan e da primeira-ministra britânica Margareth Thatcher, que o neoliberalismo começa a ser disseminado pelo mundo.
No final daquela década, em 1989, as ideias neoliberais ficam ainda mais concretas e bem delineadas teoricamente quando o economista John Williamson publica um artigo com um conjunto de regras econômicas que ficariam conhecidas como Consenso de Washington [3] [4]. O receituário inclui redução do Estado, privatizações, desregulação do mercado, enfraquecimento dos direitos trabalhistas etc. Medidas que, em um longo prazo, em países periféricos como os da América Latina, aumentaram a desigualdade e a pobreza, a ponto de até mesmo economistas do FMI chamarem a atenção para a ineficiência do receituário neoliberal [5].
Assim como tantas outras coisas, as práticas neoliberais demoraram um pouco mais a chegar no Brasil, sendo implementadas no início dos anos 1990, com Fernando Collor de Mello, e aprofundadas nos governos FHC. Mesmo nos governos petistas de Lula e Dilma, não há uma ruptura abrupta com o neoliberalismo (Santos, 2020).
Fim do bloco socialista
Além do neoliberalismo, um outro fator geopolítico que coincide com a redemocratização da América Latina é o enfraquecimento do bloco socialista até a dissolução da União Soviética, em 1991. Não é coincidência que a doutrina neoliberal tenha avançado, nas décadas de 1980 e 1990, na medida em que o bloco socialista se enfraquece e deixa de existir. A queda do muro de Berlin, por exemplo, acontece no mesmo ano do Consenso de Washington, em 1989. Com a implosão da experiência dos estados socialistas no mundo, o capitalismo pôde recrudescer, tornar-se mais voraz contra os direitos trabalhistas e a classe trabalhadora, precarizando cada vez mais a mão de obra, com menos temor do risco do espírito do comunismo encarnar nas lutas dos trabalhadores.
“O projeto político-econômico preconizado pelo Consenso de Washington no início dos anos 1990 foi o vencedor da disputa entre “estatismo versus capitalismo de mercado” (…). O retorno da democracia na América Latina a partir do fim da década de 1970 e a posterior adoção de reformas voltadas para o mercado trouxeram à região a promessa de desenvolvimento econômico e melhorias das condições de vida dos seus cidadãos.
No entanto, ao longo da década de 1990 e da primeira metade dos anos 2000 o que se viu em grande parte dos países da região foi justamente o oposto: piora dos indicadores sociais e o aumento da desigualdade, trazendo a reboque desencantamento com a democracia e com o neoliberalismo. Pesquisas como o Latinobarómetro identificaram o descontentamento dos cidadãos com as chamadas “promessas não cumpridas” (SOUZA, 2013, p. 238).
Por isso, aqui classificamos o fim do bloco socialista como um fator geopolítico contemporâneo do processo de redemocratização da América Latina que, indiretamente, contribuiu para a piora dos indicadores sociais dos latino-americanos, pois com a derrota dos estados socialistas o capital não viu mais a necessidade de barganhar com as classes populares como havia feito por longos anos do século 20. A “ameaça” socialista ajudava a refrear os excessos do capital. No Brasil, um exemplo dessa barganha é a Consolidação das Leis Trabalhistas no período getulista. Em reportagem publicada pelo Jornal do Brasil em 2 de maio de 1943, Vargas declara que para a elaboração da nova legislação trabalhista ele buscou o equilíbrio entre o capitalismo e o socialismo [6]. Era uma forma de conter a influência de socialistas e anarquistas nos movimentos operários. Mais do que isso, Getúlio Vargas disputou as lideranças sindicais contra esses grupos e para fazer essa disputa foi preciso, além da força e da coerção, fazer também algumas concessões. Em grande medida, a experiência mundial da social-democracia em diversas nações também se explica por essa dinâmica, em que o capital precisa de alguma forma negociar com a classe trabalhadora para afastar o socialismo de suas fileiras. Essa mesma dinâmica também explica em parte o chamado “estado de bem-estar social” [7], que vigorou em meados do século 20 e que o neoliberalismo se esmerou para eclodir.
Desilusão e desconfiança
A América Latína recém-democrática dos anos 1980, 1990, 2000, encontra um outro cenário, diferente do getulismo e do meado do século 20, sem o socialismo no horizonte de expectativas e, justamente por isso, enfrentando um capitalismo muito mais predatório. Desse modo, para muitos latinoamericanos, a redemocratização se mistura à frustração, por conta de uma piora (ou mesmo estagnação) na qualidade de vida no período democrático. Esse sentimento, com o passar dos anos, se converte em desconfiança nas instituições democráticas.
“Em dezessete países latino-americanos pesquisados pelo Latinobarómetro, a partir de meados dos anos 1990, apenas 1/5 do públco expressou “muita” ou “alguma” confiança em partidos políticos, e menos de 1/3 declarou confiar nos governos, parlamentos nacionais, nos funcionários públicos, na polícia e no judiciário. Estudos de casos individuais como o do México confirmam esses resultados. O panorama geral das novas democracias mostra, dessa forma, que nesse caso não está em questão uma crise de confiança política que, não logrou se enraizar em sua experiência recente, mas as dificuldades do novo regime para adensar a ligação orgânica entre os cidadãos e as estruturas de poder (…). Quando as instituições não contam com a confiança dos cidadãos, têm dificuldade para funcionar como mediação entre suas expectativas e os objetivos propostos por governos e por lideranças políticas” (MOISÉS, 2005, p. 47-48).
Em países como o Brasil, com o passar dos anos essa desconfiança nas instituições democráticas se converte em um forte sentimento de saudosismo da ditadura. Esse sentimento passa a ser instrumentalizado politicamente e é o que, juntamente com outros fatores, como por exemplo o antipetismo, leva ao surgimento de uma nova extrema-direita que tem na figura de Jair Bolsonaro seu principal nome. Até então um político pouco relevante do chamado “baixo clero”, Bolsonaro é eleito presidente da República. Seu discurso antissistema (mesmo sendo ele próprio fisiológico desses sistema, com tantos mandatos parlamentares no currículo) e apologético ao autoritarismo conquistou as mentes de muitos que, descrentes das instituições democráticas, possivelmente tinham na frustração com a agenda neoliberal as raízes dessa descrença, ainda que nem sempre se perceba a coincidência entre os diferentes fatores geopolíticos aqui citados e a conjuntura que os une.
Portanto, para algumas pessoas que viveram os tempos da ditadura militar e que, a despeito do autoritarismo, encontraram naqueles tempos possibilidades como acesso a moradia, a educação e outros itens básicos, é possível que, em contraste com o atual estágio do capitalismo neoliberal predatório, afirmem e acreditem que “antigamente é que era bom”. O erro entretanto está na identificação do problema. E, quando se erra na identificação do problema, erra-se na propositura da solução. A democracia não é a culpada, mas sim a solução, pois é por meio dela que a sociedade pode lutar por representativdade nas instituições, para que as mesmas não continuem capturadas pelo capital e servindo de artífices do receituário neoliberal. Receituário contra o qual a escolha protofascista de Jair Bolsonaro não apresenta nenhuma solução concreta. Pelo contrário, o apologista da ditadura busca se alinhar ao neoliberalismo almejando uma governabilidade garantida pelos detentores de capital e de poder.
Referências:
MOISÉS, José Álvaro. A desconfiança nas instituições democráticas. Revista Opinião Pública, Campinas, v. XI, n. 1, março, 2005, p. 33-63. Disponível em <https://www.scielo.br/j/op/a/xymhYmLZdKYkpmDbwqzj44S/?format=pdf&lang=pt >
SANTOS, Adriano Pereira. O Brasil é socialista? In: Revisionismos: a universidade esclarece. São Paulo, Mentes Abertas, 2020.
SOUZA, André Luiz Coelho. O papel da sociedade e das instituições na definição das crises políticas e quedas de presidentes na América Latina. Monções, Revista de Relações Internacionais da UFGD, Dourados, v 2, n. 3, jan/junm 2013. Disponível em: < https://ojs.ufgd.edu.br/index.php/moncoes/article/view/2694/1539>
[1] https://www.politize.com.br/neoliberalismo-o-que-e/
[3] https://brasilescola.uol.com.br/geografia/consenso-washington.htm
[4] https://mundoeducacao.uol.com.br/geografia/consenso-washington.htm
[5] https://www.politize.com.br/neoliberalismo-o-que-e/
[7] https://www.politize.com.br/estado-de-bem-estar-social-e-estado-liberal-diferenca/
Imagem de capa D.R.: Manifestação pró-Bolsonaro pedindo o fechamento de instituições democráticas do Judiciário e Legislativo



