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Ventos de outrora

Ventos de outrora

O mês de janeiro foi marcado por acontecimentos aparentemente anacrónicos, relativamente a quem se habituou há muitos anos a viver em democracia.

No ano do 25 de abril, eu tinha 11 anos. Ainda conheci ideias retrógradas e comportamentos típicos de um regime político que, na minha ingenuidade juvenil, eu achava injustos e desagradáveis. No entanto, eu ainda não tinha a maturidade de me insurgir contra eles.

Hoje, porém, quase 45 anos depois, e vivendo felizmente em democracia, posso não só fazê-lo, como devo criticá-los veementemente, lutando contra factos e acontecimentos que são absolutamente reprováveis e antidemocráticos.

O início do mês foi abalado pela entrevista concedida a um canal de televisão, por um neonazi condenado a 20 anos de prisão por homicídio, discriminação racial, extorsão, sequestro, tortura, roubo e coação agravada, ofensa à integridade física, dano, posse ilegal de armas e difamação. O canal, ávido de audiências, defendia-se alegando ouvir “opiniões polémicas”. No entanto, o entrevistado não só as proferia, como ia bem mais além, vangloriando-se imoral e sadicamente: “um dos anos mais felizes que tive foi o ano em que esfaqueei 11 pessoas, recorde absoluto, o sentir da faca a entrar, o inimigo a desfalecer, o seu olhar de pânico, tudo isto em conjunto dá-me vida, recarrega-me baterias”. Estalada a polémica, o apresentador  defendia que esta é “uma oportunidade de ouro para confrontar argumentos e ideias. Chama-se a isso viver”.

Pelo contrário, é meu dever contestá-lo, afirmando que eu não quero viver isto, nem ouvir tais dislates. Viver em democracia tem limites e um deles é não permitir quem viole os seus princípios. Um dos principais é o do direito à liberdade de expressão mas, numa altura em que aqui e ali vão brotando populistas que devemos combater a todo o custo, é nossa obrigação evitar a sua intromissão no espaço público. Por isso, em nome da sustentabilidade da democracia, há que denunciar o depoimento de alguém cujo opinião não merece um pingo de respeito, pelo seu historial de criminoso racista e de defensor de um novo Salazar em Portugal.

Ainda mal refeita daquele vento fétido do antigamente, o mesmo canal mostrava uma sessão de “conversão ou de reorientação sexual”, apresentando a opinião de uma psicóloga que equipara a homossexualidade a uma perturbação psicológica ou a “um surto psicótico”. Tais declarações foram alvo de críticas da Ordem dos Psicólogos Portugueses, salientando de imediato que «de acordo com toda a evidência científica disponível, o muito amplo consenso entre investigadores e profissionais e a posição das principais organizações profissionais de Saúde e de Psicologia internacionais, a homossexualidade não é uma perturbação mental nem implica qualquer tipo de incapacidade, sendo uma variante da sexualidade humana, não podendo ser, desta forma, associada a qualquer forma de psicopatologia”.

Mais recentemente, e como diz o povo, “não há uma sem duas, nem duas sem três”, outra brisa bafienta soprou, desta feita, na área educativa. Trata-se do caso do poema de Álvaro de Campos, heterónimo de Fernando Pessoa, censurado num manual de uma das maiores editoras portuguesas. Três versos da “Ode Triunfal” foram substituídos por linhas a tracejado. A editora defendeu-se, afirmando que a versão integral do poema se encontra no livro do Professor e que o corte de três versos no manual para os alunos não é censura, tratando-se tão somente de omissão de “linguagem explícita” de abordagem à pedofilia, defendendo que cabe aos professores decidir se estudam ou não os referidos versos. A presidente da Associação de Professores de Português repudiou o corte de versos feito pela editora porque “ao fazê-lo, já não estamos perante o mesmo texto, nem a respeitar o seu autor”. Acrescentou ainda: “Estamos a falar de alunos do 12.º ano, que têm entre 17 e 18 anos. Não faz qualquer sentido estar a escamotear versos só porque alegadamente têm uma linguagem menos própria”. Ora, esta opção acaba por desvirtuar o estudo de Álvaro de Campos, que precisamente utiliza “uma linguagem que pretende agredir, chocar”, concluiu. Como professora de Português do Ensino Secundário, devido ao facto de o poema ser muito extenso, quase sempre optei por escolher excertos para abordar nas aulas. No entanto, também acho condenável a opção pelo corte de três versos quando a intenção era a de reproduzir integralmente o poema.

Por sua vez, o Estado Novo, no que se refere à “Ode Triunfal”, já tinha retirado os versos que a censura salazarista considerava ofenderem a moral e os bons costumes. Álvaro de Campos, por seu lado, considerava a sua “Ode Triunfal” a única coisa que se aproxima do futurismo, desejando “sentir tudo de todas as maneiras, amar tudo de todas as formas”, exprimindo-o propositadamente num estilo torrencial, sarcástico e sem quaisquer eufemismos. Do espanto à indignação, as reações rapidamente se fizeram sentir, sendo a maior parte de quem não conhecia o texto ou o conhecia já desvirtuado. Ao serem repostos os três versos censurados, muita gente teve finalmente a oportunidade de conhecer pela primeira vez o poema não truncado. No manual adotado, na versão para os alunos, estes versos deveriam estar consagrados, conforme o espírito das “aprendizagens essenciais”, segundo as quais devem ser fruídos em pleno os textos do património literário português. 

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