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Somos todos pacientes. Os direitos e os deveres

Somos todos pacientes. Os direitos e os deveres

Somos todos pacientes. Mais tarde ou mais cedo.

Porque ser paciente não quer dizer ser doente.

No ciclo de vida, e por isso mesmo antes do nosso nascimento, quando estamos a crescer na barriga da nossa mãe, ela provavelmente foi seguida desde o início da sua consulta de planeamento familiar, passou por uma série de consultas de rotina, de ecografias ou de medições e avaliações, até ao nascimento. E aí, oficialmente seguimos o nosso caminho em saúde, como pacientes.

 Somos assim, todos pacientes, mais tarde ou mais cedo.

Já na década de 50, Szasz e Hollender (1956), vislumbravam um cuidado centrado no paciente, onde a hegemonia do médico dava lugar a um acordo mais colaborativo e representativo da verdadeira díade em saúde mostrando a possibilidade de existência, na relação em saúde, de poderes aproximadamente iguais entre profissional e paciente, numa interdependência mútua e atividades satisfatórias para ambos (p. 587).

Engel (1981) mostrou-nos a força do modelo biopsicossocial e da natureza humana da relação em saúde. Nada se faz sem a pessoa. E é com a pessoa que o profissional de torna no que é. Esta força identitária que o cunha como “fonte credível”, permite-lhe ter o reconhecimento e visibilidade no mundo.

Esta credibilidade da fonte é vista como a capacidade do profissional de saúde para fornecer informações válidas, à qual acresce a sua confiabilidade, isto é, a sua veracidade, sem considerações de ganho (Crano & Siegel, 2017, p. 98).

O profissional é um perito fiável (O’Keefe & Medway, 1997).

Mas esta introdução vem a propósito do que se pretende refletir, e que é o campo dos direitos e dos deveres dos pacientes.

A Ordem dos Médicos (2020) designa a Carta dos Direitos e dos Deveres dos Utentes como um “instrumento de parceria na saúde, e refere imediatamente que não é um documento “de confronto”, mas que contribui para o “primado do cidadão, figura central de todo o Sistema de Saúde” e que serve “para desenvolver um bom relacionamento entre os doentes e os prestadores de cuidados de saúde”. Esta nota da OM (2020) realça no seu texto que o objetivo da “Carta” é “sobretudo, estimular uma participação mais ativa por parte do doente”.

Mas esse “confronto” a que a OM (202ª) alerta não parece fazer sentido, quando observados que temos o dobro dos direitos (12) face aos deveres (6).

Nesta reflexão, talvez valesse a pena não designar por “doente” aquele que é representado na “Carta”. Porque se pensarmos na tal senhora grávida, que não tem doença ou patologia por simplesmente estar nesse estado, e querer fazer o seu seguimento em cuidados de saúde na comunidade, por exemplo, e que será acompanhada, e bem, por um médico de medicina geral e familiar (MGF), não é necessariamente uma “doente”, “palavra que etimologicamente provém de dolentia e que pode ser entendida como falta ou perturbação da saúde” (Nunes & Melo, 2010, p. 3).

E mesmo “considerando que as pessoas doentes constituem um grupo particularmente vulnerável e fragilizado” (Nunes & melo, 2010, p. 9), como pessoas que são, têm os direitos que assistem a todas as outras. E o primeiro desses direitos é o “respeito pela dignidade humana”.

Quando se fala em “dignidade humana” assume-se um direito fundamental, constituído em todas as civilizações.

Cruz e Gomes (2013), reflectem que “a doença não dá ou tira direitos à pessoa, o que acontece é o reconhecimento vindo de fora, do outro (do médico), e o assentimento da pessoa que se auto-constitui no “direito” e no “dever” de ser curada e tratada (p. 83).

Para estes autores (Cruz & Gomes, 2013), “só existe doença se existir pessoa. Por isso, a pessoa é anterior à doença, logo, por antonomásia, a dignidade intrínseca da pessoa confere-lhe o direito e dever substancial e nunca circunstancial” (p. 83).

A carta dos Direitos do Paciente (American Hospital Association-AHA Patient’s Bill of Rights, 1992) realça que o atendimento ideal deve basear-se numa comunicação aberta e honesta, com respeito pelos valores pessoais e sensibilidade quanto às diferenças (e.g. culturais, raciais, linguísticas, religiosas, etárias, de género).

Talvez por isso, e porque os direitos estão bem patentes, e o “paciente” deixou de ser “aquele que sofre em paciência”, e não é simplesmente “utente” por que pode não ser um mero “utilizador” de serviços públicos, que o termo “paciente”, imediatamente percetível e reconhecível neste mundo global, poderá ser usado de forma efetiva, e sem conotações negativas, transversalmente.

Se porém, persistirmos em reconhecer que a pessoa recorre aos serviços de saúde como um consumidor, e se considerarmos a saúde como um bem de consumo, e não de direito social, talvez devêssemos designar de “cliente” (Takauti, Pavone, Cabaral & Tanaka, 2013, p. 176).

Mas seja nos serviços privados, seja no serviço público, os direitos que nos são reservados, a todos sem exceção de género, cor, raça, idade, convicções culturais, filosóficas e religiosas, pressupõem que sejamos tratados no respeito pela dignidade humana.

Informação, consentimento e confidencialidade estão patentes na Carta dos Direitos.

Esta “informação” é mais do que a junção do signo e do seu conteúdo, pois vem imbuída de compreensão, pelo que se transforma em “comunicação” (Wonca, 2002).

Quando refletimos sobre os “deveres”, evidenciam-se: a responsabilidade de cada um por “zelar pelo seu estado de saúde”.

A “Carta” é clara, isto quer dizer que cada pessoa (ou de quem dela depende, por exemplo cuidador de pessoa idosa ou pais e filhos) “deve” procurar garantir o mais completo restabelecimento” (e por isso do próprio ou do dependente) estendendo-se à “comunidade em que vive”. Em tempos de Covid 19, esta determinação do “dever” mesmo em relação à comunidade, faz ainda mais sentido.

Lemos ou ouvimos nas notícias disseminadas, de casos de pessoas infetadas com Covid 19 que saem das suas habitações para circularem no meio de outras, ou que as praias estão cheias (de potenciais propagadores) e não respeitando este “dever” claro, muitas pessoas colocam outras em risco.

Se refletirmos nesta incapacidade, recusa, indiferença ou alheamento de responsabilidade para o dever destas pessoas, que colocam as comunidades em risco, não poderemos chamá-los de “cidadãos”.

Ser “cidadão” é um título de credibilidade e de responsabilidade que é dado a quem intervém em benefício, seu, dos que deles dependem e dos que consigo convivem numa comunidade, para a construção de uma melhor sociedade.

Continuando pelos deveres, este é particularmente interessante, o “dever de fornecer aos profissionais de saúde todas as informações necessárias para obtenção de um correto diagnóstico e adequado tratamento”. Haverá quem minta? Quem tenha vergonha ou embaraço do que tem? Provavelmente a resposta é “sim”. Sabemos que são os que têm mais baixa literacia em saúde (Espanha, Ávila & Mendes, 2016) que são os mais embaraçados e envergonhados, mas provavelmente aqui estarão não apenas os que têm educação e rendimentos limitados ou escassos. A vergonha e o embaraço da doença atingem muitas pessoas independentemente do seu status.

Se por um lado, há “liberdade” para aceitar as indicações dadas pelos profissionais de saúde, por outro, o paciente tem o dever de cooperação, isto é, deve colaborar para o fim que se pretende (preventivo, curativo, de promoção).

Esta participação do paciente na saúde implica ainda que, ao utilizar os serviços de saúde, o faça de forma apropriada.

Quando outro dos deveres consiste também na sua colaboração ativa para reduzir gastos desnecessários, voltamos outra vez ao determinante da saúde que é a literacia em saúde, que envolve as competências cognitivas (próprias) e sociais (saber viver em comunidade) para gerir a sua saúde, e tomar decisões que melhorem o seu estado ou de quem de si depende, de forma responsável e com cidadania.

Fica a pergunta se esta cidadania precisa de mais educação, promotora não apenas de conhecimento em saúde, mas do valor da dignidade e do respeito humano.

Somos, fomos e seremos sempre pacientes. Pacientes em saúde, sem dúvida e, pacientes em tudo?

Urge educar. Urge mudar. Urge intervir.

Excerto da Carta dos Direitos e Deveres dos Doentes (extraído do sitío público da Ordem dos Médicos (2020)

DIREITOS DOS DOENTES

  1. O doente tem direito a ser tratado no respeito pela dignidade humana.
  2. O doente tem direito ao respeito pelas suas convicções culturais, filosóficas e religiosas.
  3. O doente tem direito a receber os cuidados apropriados ao seu estado de saúde, no âmbito dos cuidados preventivos, curativos, de reabilitação e terminais.
  4. O doente tem direito à prestação de cuidados continuados.
  5. O doente tem direito a ser informado acerca dos serviços de saúde existentes, suas competências e níveis de cuidados.
  6. O doente tem direito a ser informado sobre a sua situação de saúde.
  7. O doente tem o direito de obter uma segunda opinião sobre a sua situação de saúde.
  8. O doente tem direito a dar ou recusar o seu consentimento, antes de qualquer ato médico ou participação em investigação ou ensino clínico.
  9. O doente tem direito à confidencialidade de toda a informação clínica e elementos identificativos que lhe respeitam.
  10. O doente tem direito de acesso aos dados registados no seu processo clínico. 11. O doente tem direito à privacidade na prestação de todo e qualquer acto médico.
  11. O doente tem direito, por si ou por quem o represente, a apresentar sugestões e reclamações.

DEVERES DOS DOENTES

  1. O doente tem o dever de zelar pelo seu estado de saúde. Isto significa que deve procurar garantir o mais completo restabelecimento e também participar na promoção da própria saúde e da comunidade em que vive.
  2. O doente tem o dever de fornecer aos profissionais de saúde todas as informações necessárias para obtenção de um correto diagnóstico e adequado tratamento.
  3. O doente tem o dever de respeitar os direitos dos outros doentes.
  4. O doente tem o dever de colaborar com os profissionais de saúde, respeitando as indicações que lhe são recomendadas e, por si, livremente aceites.
  5. O doente tem o dever de respeitar as regras de funcionamento dos serviços de saúde.
  6. O doente tem o dever de utilizar os serviços de saúde de forma apropriada e de colaborar ativamente na redução de gastos desnecessários.

Referências

American Hospital Association. (2003). The patient care partnership: Understanding expectations, rights and responsibilities. Disponível em: http://wwwahaorg/content/00-10/pcp_english_030730.pdf

Crano, W. D., & Siegel, J. T. (2017). Social signals and persuasion. In J. K. Burgoon, N. Magnenat-Thalmann, M. Pantic & A. Vinciarelli (Eds.), Social signal processing (pp. 97-109). Cambridge, UK: Cambridge University Press.

Cruz, J., & Gomes, C. (2013). O conceito de filosofia da medicina em Pellegrino e Thomasma. Revista de Bioética Latinoamericana, 11, 82-99 / ISSN: 2244-7482

Engel, G.L. (1981). The clinical application of the biopsychosocial model. Journal of Medicine and Philosophy, 6, 101-123.

Espanha, R., Ávila, P., & Mendes, R. M. (2016). A literacia em saúde em Portugal. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian

Nunes, R., & Melo, H. (). Parecer n.º p/18/apb/10 – carta dos direitos do utente dos serviços de saúde relatores. Porto; Associação Portuguesa de Bioética. www.apbioetica.org.

O’Keefe. D.J. & Medway, F.J. (1997). The application of persuasion research to consultation in school. Psychology35(2), 173.193.

Ordem dos Médicos. (2020). Carta de direitos e deveres dos utentes. Disponível em: https://ordemdosmedicos.pt/carta-dos-direitos-e-deveres-dos-utentes/

Szasz. T., & Hollender M. (1956). A contribution to the philosophy of medicine: the basic models of the doctor-patient relationship. Archives of Internal Medicine, 97, 585−592.

WONCA. (2002). Definição europeia de medicina geral e familiar (Clínica Geral/Medicina Familiar). Barcelona: WONCA.

Vaz de Almeida, C. (2019). Capacitação dos profissionais de saúde. Literacia em saúde e competências de comunicação dos profissionais de saúde. O modelo de comunicação em saúde ACP. Revista Nephros, 21(1), 25-28.

https://www.researchgate.net/publication/335327823_LITERACIA_EM_SAUDE_CAPACITACAO_DOS_PROFISSIONAIS_DE_SAUDE_DESENVOLVIMENTO_DE_COMPETENCIAS_DE_COMUNICACAO_O_MODELO_ACP

Imagem (fernandozhiminaicela) gratuita em Pixabay

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