Sobremaneira elogiado dentre a safra mais recente do Festival Internacional de Cinema de Cannes, a produção espanhola “Sirât” (2025, de Oliver Laxe) recebeu o Prêmio do Júri, além de ser laureado com um troféu para Melhor Trilha Musical (a cargo de Kangding Ray) e de receber a Palm Dog, valorizando o trabalho dos cães que aparecem em cena. Por causa de todo o auê que provocou entre os cinéfilos, este filme foi escolhido para ser exibido na abertura da quadragésima nona edição da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, programada entre 16 e 30 de outubro de 2025. Ocorre que, como o filme já foi disponibilizado em um serviço de ‘streaming’ de seu país natal, ele vazou na Internet, de maneira que várias pessoas assistiram à produção domesticamente, perdendo a oportunidade de conferi-la nas condições ideais cinematográficas (tela grande e som altissonante). Com isso, houve quem se decepcionasse bastante em relação à obra, reclamando que ela não seria tão imersiva quanto foi publicizada…
Sem que tenhamos a intenção de minguar o interesse do público neste filme — que, com certeza, estará mencionado nas listas de diversos críticos, ao relacionarem os melhores filmes do ano —, adiantamos que o maior problema de “Sirât” está evidenciado em sua sinopse: “um homem e o seu filho chegam a uma rave perdida no meio das montanhas áridas e fantasmagóricas do sul de Marrocos. Procuram Marina, a sua filha e irmã, desaparecida há meses numa dessas festas intermináveis e sem descanso”. Ou seja, há vários elementos, neste textinho de divulgação, que evidenciam algo bastante incômodo no filme, que é a sua tendência inassumida ao melodrama familiar, com toques de manipulação emocional. Quando os personagens vêem-se posicionados num ambiente desértico, em que há minas explosivas enterradas, o espectador é conduzido para um inevitável questionamento: “por que diabos eles foram para lá?!”.
Anteriormente exaltado pela revista Cahiers do Cinéma, quando foi lançado o elogiadíssimo “O Que Arde” (2019), o estilo do realizador galego Oliver Laxe parece atravessado por alguns equívocos, em seu novo longa-metragem: a resenha sobre o filme atual, publicada na edição 823, correspondente ao mês de setembro de 2025, foi ostensivamente negativa, com alguns julgamentos sobre os comportamentos dos personagens, como a afirmação de que o transe é um sintoma de autodestruição e a declaração de que os diálogos direcionados aos atores não-profissionais são “insípidos”. Infelizmente, tais observações são procedentes: a despeito da excelente (e frenética) sequência de abertura, o ritmo do filme decai progressivamente quando o protagonista Luis (Sergi López) e seu filho pré-adolescente Esteban (Bruno Núñez Arjona) juntam-se aos ‘clubbers’ mutilados que o acolhem de maneira imediatamente simpática.
Se a trama de “Sirât” aprisiona o potencial desta obra em certas convenções narrativas, no que tange à temática da reconciliação e na lida lisérgica com os sentimentos de luto e perante as injustiças contemporâneas, soa muito problemático que o roteiro — escrito pelo próprio diretor, em parceria com o argentino Santiago Fillol, seu colaborador habitual — acate as justificativas pretensamente despolitizadas daqueles personagens, através do pretexto simplista de que “já estamos vivenciando o fim do mundo”, conforme eles dizem em reação à transmissão apocalíptica de uma emissora de rádio. Neste sentido, que um diretor tão consciente de suas responsabilidades artísticas — conforme demonstra ser Oliver Laxe, nas entrevistas sobre o filme — tenha consentido com uma abordagem tão rasa do universo ‘clubber’, num contexto de permanente intimidação pela polícia marroquina, é algo que nos deixa intrigados quanto aos interesses discursivos da obra: é uma crítica frontal àquelas pessoas, ao invés de uma tentativa de efetivamente compreendê-los? As opiniões responsivas a questões como essa variarão de pessoa para pessoa e, por isso, é tão importante que o filme seja visto, divulgado e debatido, para além de quaisquer comentários negativos, como este ora escrito.
Da mesma maneira que o cachorro que fica intoxicado ao ingerir fezes humanas prenhes de LSD, os espectadores devem adentrar sessões como essa com coração e mente abertos, estando dispostos a aceitar o que o filme tem a ofertar, muito mais do que em ver confirmadas (ou refutadas) as expectativas depositadas sobre a obra, com base em avaliações externas, midiaticamente agendadas de maneira estratégica, a fim de aproveitarem lampejos de polêmica através de qualquer dissenso. Portanto, de nossa parte, reiteramos que, malgrado termos nos decepcionado quanto à exploração das qualidades sensórias deste longa-metragem, há muito o que ser debatido a partir dele, inclusive no que diz respeito a uma averiguação das obras precedentes de seu diretor. Que tal aproveitarmos este gancho provocativo para avaliar os porquês de amarmos (ou odiarmos) antecipadamente alguns filmes e, a partir daí, começarmos a organizar os títulos pré-favoritos deste ano — que, em poucos meses, chega ao fim?
Wesley Pereira de Castro.
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