Em março de 2021, foi promulgada a lei paulista de liberdade religiosa (lei 17.346). Já publiquei um artigo questionando alguns pontos desta lei. Aproveito a oportunidade para reiterar a minha crítica.
Primeiramente quero deixar claro que não trata-se de uma crítica pessoal à autora do projeto de lei, a deputada evangélica Damaris Dias Moura Kuo. Disseram-me que ela tem uma longa e importante atuação na defesa da liberdade religiosa no Estado de São Paulo, especificamente no âmbito da Ordem dos Advogados do Brasil (Secção de São Paulo). No entanto, independente de qualquer juízo sobre a autora e suas ações no sentido da defesa da liberdade religiosa, eu contesto somente os pontos do texto da lei que considero extremamente problemáticos.
O objetivo da lei não deixa de ser louvável. Conforme o seu artigo 1º, a lei “se destina a combater toda e qualquer forma de intolerância religiosa, discriminação religiosa e desigualdades motivadas em função da fé e do credo religioso”. A minha crítica recai especificamente sobre: (1) a concepção de liberdade religiosa presente na lei; (2) a proposta do estabelecimento de parcerias entre o poder público e as organizações religiosas para promover a liberdade religiosa; (3) o preconceito subjacente contra as religiões afro-brasileiras; (4) a intenção de cercear o trabalho docente na educação básica; e (5) a aparente ausência de ampla interlocução com os profissionais da educação básica e com as comunidades religiosas afro-brasileiras.
Será que a concepção de liberdade religiosa presente na lei é a mais adequada para ser defendida no nosso contexto? Será que a defesa dessa concepção de liberdade religiosa é capaz de enfrentar os diversos casos de intolerância religiosa?
“O Estado não discriminará nem privilegiará qualquer organização religiosa em detrimento de outras.” (Art. 13)
“É vedado ao poder público estadual criar qualquer benefício ou restrição direcionada a um único segmento religioso sem permitir, disponibilizar ou determinar a inclusão dos demais, sendo vedado qualquer tipo de discriminação ou segregação religiosa em seus atos.” (Art. 14, § 2º)
“O poder público do Estado de São Paulo, compreendido em todos os seus órgãos e funções, é laico e não pode exercer ou demonstrar preferência ou afinidade por qualquer religião, sendo vedada toda forma de institucionalização, financiamento, associação ou agregação de cultos, ritos, liturgias ou crenças religiosas, sem prejuízo aos símbolos religiosos já integrados à cultura e à história estadual e nacional.” (Art. 29)
Conforme os artigos 13, 14 e 29, fica claro que a lei defende uma neutralidade em termos religiosos por parte do poder público. Mas, ao mesmo tempo, o artigo 29 admite que há símbolos religiosos que já estão “integrados à cultura e à história estadual e nacional”. Ou seja, admite-se que existem, sim, desigualdades em termos religiosos, mas não há previsão de medidas para compensar ou mitigar estas desigualdades. Pelo contrário, a concepção de liberdade religiosa presente na lei parece simplesmente aceitar e defender a manutenção das desigualdades em termos religiosos.
Se o objetivo da lei é “combater toda e qualquer forma de intolerância religiosa”, ela não deve priorizar a defesa dos grupos religiosos que são mais atacados e discriminados? Por exemplo, se as comunidades religiosas afro-brasileiras são aquelas que mais sofrem com a intolerância religiosa e com o racismo, não deve haver uma priorização no sentido da defesa e da valorização destes grupos? Parece que não houve conjugação entre a concepção de liberdade religiosa e o combate à intolerância religiosa.
Por que a lei prevê parcerias entre o poder público e as organizações religiosas para promover a liberdade religiosa? Será que isto não criará novos problemas entre diferentes grupos religiosos? Será que houve alguma intenção de beneficiar grupos evangélicos?
“O Estado de São Paulo poderá estabelecer cooperações de interesse público com as organizações religiosas radicadas no território estadual com vistas, designadamente, à promoção dos direitos humanos fundamentais, em especial, à promoção do princípio da dignidade da pessoa humana. Não constitui proselitismo religioso nem fere a laicidade estatal a cooperação entre o poder público estadual e organizações religiosas com vistas a atingir os fins mencionados neste artigo.” (Art. 37)
Conforme o artigo 37 e outros, a parceria entre o poder público e as organizações religiosas é tomada como algo de interesse público e que não fere a laicidade, sendo que ela pode ser estabelecida até mesmo para promover a liberdade religiosa nos órgãos públicos. Mas será que as organizações religiosas estão efetivamente aptas para promover a liberdade religiosa nos órgãos públicos? Não se pode minimizar o papel de diversos grupos religiosos no sentido de protagonizar ataques de intolerância religiosa e racismo contra outros grupos religiosos. Por exemplo: como as igrejas evangélicas, as mais prováveis parceiras do poder público, combaterão a intolerância religiosa e o racismo que elas mesmas promovem contra as comunidades religiosas afro-brasileiras?
Por que alguns artigos da lei (27 e 34) parecem conter a ideia subjacente de que as religiões afro-brasileiras não respeitam os animais e não respeitam o meio ambiente? Por que alguns artigos da lei parecem conter preconceito contra as comunidades religiosas afro-brasileiras?
“O abate religioso de animais deve respeitar as disposições legais aplicáveis em matéria de proteção dos animais, observando-se sempre o princípio da dignidade.” (Art. 27)
“O Estado de São Paulo: I. assegurará ampla liberdade de consciência, de crença, de culto e de expressão cultural e religiosa em espaços públicos; II. realizará campanhas de conscientização sobre o respeito a todas as expressões religiosas, bem como campanhas de promoção, proteção e defesa do direito de liberdade religiosa para todos e em todos os lugares; III. garantirá, nos limites legais, o acesso aos parques de conservação ambiental e o uso democrático de espaços públicos para as manifestações, cultos e práticas de crenças religiosas, respeitados os regulamentos e normas de segurança, e também, respeitadas as áreas de proteção permanente (APP), a reserva legal (RL) e as unidades de conservação (UC).” (Art. 34)
Os artigos 27 e 34 são os únicos artigos da lei que mencionam explicitamente os dispositivos legais e as normas que as práticas religiosas devem respeitar. O sacrifício animal e as práticas religiosas em parques e reservas ambientais são práticas mais comuns entre as comunidades religiosas afro-brasileiras. Ou seja, a lei parece conter, sim, a ideia subjacente de que as religiões afro-brasileiras não respeitam os animais e não respeitam o meio ambiente. Talvez sejam os únicos artigos que abordam determinadas práticas religiosas de forma negativa. Por quê?
Por que alguns artigos da lei (33, 69 e 70) buscam cercear o trabalho docente? Por que o texto da lei aparentemente considera que os professores são inimigos da liberdade religiosa? Quais são exatamente os conteúdos escolares que desrespeitam a religiosidade dos brasileiros e contrariam a liberdade religiosa?
“O ensino religioso em escolas públicas não será confessional, mas respeitará os valores que expressam a religiosidade dos brasileiros e estrangeiros residentes no estado. As escolas públicas do Estado de São Paulo não admitirão conteúdos de natureza ideológica que contrariem a liberdade religiosa.” (Art. 33)
[Constitui infração administrativa] “Incutir em alunos, valendo-se da posição de superioridade hierárquica de professor, convicções religiosas e ideológicas que violem a liberdade religiosa. I. multa administrativa de 200 (duzentas) a 3000 (três mil) Unidades Fiscais do Estado de São Paulo (UFESPs), no caso do infrator ser primário.” (Art. 69)
[Constitui infração administrativa] “Escarnecer dos alunos e de seus familiares em razão de crença, valendo-se da posição de superioridade hierárquica de professor. I. multa administrativa de 200 (duzentas) a 3000 (três mil) Unidades Fiscais do Estado de São Paulo (UFESPs), no caso do infrator ser primário.” (Art. 70)
Os artigos 33, 69 e 70 insistem no sentido da intervenção na educação básica. A lei prevê até mesmo multa para professores supostamente doutrinadores que tentam “incutir convicções religiosas e ideológicas que violem a liberdade religiosa”. O que isto significa? Será que trata-se de uma tentativa de cercear o trabalho docente? Quais são exatamente os conteúdos escolares que desrespeitam a religiosidade dos brasileiros e que contrariam a liberdade religiosa?
Será mesmo que o texto da lei foi efetivamente e exaustivamente discutido com os profissionais da educação básica e com as comunidades religiosas afro-brasileiras? Como serão as campanhas de combate à intolerância religiosa? Por que não há previsão de participação dos profissionais da educação básica e das comunidades religiosas afro-brasileiras na elaboração das campanhas de combate à intolerância religiosa?
“O Poder Executivo do Estado de São Paulo promoverá, anualmente com o apoio das emissoras de rádio e televisão educativas do Estado, amplas campanhas públicas de combate à intolerância e à discriminação religiosa, incentivando sempre o respeito às diferenças de credo.” (Art. 40)
Conforme os aspectos mencionados acima, parece que o texto da lei não foi efetivamente e exaustivamente discutido com os profissionais da educação básica e com as comunidades religiosas afro-brasileiras. Por exemplo, não menciona-se medidas do poder público para atender e respeitar as práticas específicas das comunidades religiosas afro-brasileiras. Quais medidas efetivas serão tomadas para os serviços públicos atenderem de forma adequada as demandas das comunidades religiosas afro-brasileiras? Quais medidas efetivas serão tomadas para proteger as comunidades religiosas afro-brasileiras dos ataques de intolerância religiosa e de racismo? Neste sentido, é importante a promoção de campanhas de combate à intolerância religiosa e de treinamentos específicos para servidores públicos. Mas o texto da lei não prevê a participação dos profissionais da educação básica e das comunidades religiosas afro-brasileiras na elaboração de campanhas e de planos de combate à intolerância religiosa. Por quê?
Para finalizar, lembro novamente que não trata-se de um ataque pessoal contra a autora do projeto ou contra sua trajetória na defesa da liberdade religiosa. Respeitosamente apresento meus questionamentos em relação aos aspectos da lei paulista de liberdade religiosa (lei 17.346) que considero problemáticos. Não espero que a autora e os responsáveis pela implementação da lei respondam os questionamentos exclusivamente a mim, mas peço veementemente que estabeleçam interlocução com os profissionais da educação básica e com as comunidades religiosas afro-brasileiras.
Referências:
Fiorotti, S. “É preciso combater a intolerância religiosa na educação básica.” Observatório da Imprensa, São Paulo, v. 1021, 22/1/2019.
Fiorotti, S. “Lei paulista de liberdade religiosa beneficia evangélicos e não enfrenta a intolerância religiosa.” A Pátria, Funchal, 29/11/2020.
Fiorotti, S. “Pastores precisam combater a intolerância religiosa cometida por evangélicos.” A Pátria, Funchal, 24/1/2022.
Moura Kuo, D.D. “Projeto de lei 854: institui a lei estadual de liberdade religiosa no Estado de São Paulo e dá outras providências.” ALESP, São Paulo, 02/8/2019.
São Paulo. “Lei 17.346: lei estadual de liberdade religiosa.” DOSP, São Paulo, 13/3/2021.