Segundo denúncias formalizadas pelo Ministro de Defesa da Ucrânia, Oleksii Reznikov, tropas russas teriam assassinado e estuprado civis na região de Kiev. Na mesma cidade, mais de quatrocentos corpos foram encontrados, o que aumenta as imprecações contra a ofensiva russa, numa guerra que se estende o dia 24 de fevereiro de 2022. Tudo isso confirma uma relação duradora deste país com as atividades bélicas.
Conforme especificado no título deste artigo, há uma separação centenária entre a primeira citação frasal e a segunda, ambas encontradas em documentários exibidos na vigésima sétima edição do Festival É Tudo Verdade: no mais antigo dos casos, a exortação aparece num dos intertítulos do filme “A História da Guerra Civil” (1921, de Dziga Vertov), que muitos consideravam perdido, até ser restaurado pelo pesquisador Nikolai Izvolov; no mais recente, ouvimos o laudo do advogado Alexei Navalny, num documentário que acompanha a sua trajetória depois que ele foi supostamente envenenado por Vladimir Putin, em 2017. É o que verificamos em “Navalny” (2022, de Daniel Roher).
Apesar de serem produzidos em circunstâncias absolutamente distintas, ambos os filmes possuem uma condução histórico-narrativa que flerta com a linguagem jornalística. Se a produção vertoviana é um predecessor do que veio a ser conhecido como cinejornalismo, o outro documentário assume isso de maneira explícita, visto que é produzido pelo canal televisivo norte-americano CNN. Nos dois casos, deparamo-nos com estratégias propagandísticas, que visam à legitimação do que é proferido por seus personagens reais.
Em “A História da Guerra Civil”, Leon Trostky [1879-1940] aparece de maneira contundente, conclamando os soldados soviéticos ao combate, visto que, no período em pauta – nos anos imediatamente posteriores à revolução de 1917 –, eram freqüentes os levantes dos imperialistas, latifundiários e contra-revolucionários em geral. No documentário, verificamos uma sucessão de datas, nomes e julgamentos, que finaliza com uma comemoração parcial, já que a guerra civil filmada só acabaria no ano seguinte à produção do longa-metragem. Entretanto, ele foi impedido de ser exibido por várias décadas, em razão do protagonismo de uma figura central para os bolcheviques, malquista pelo ditador Josef Stalin [1878-1953].
Se o cineasta responsável por este filme é consagrado por causa de um dos maiores clássicos da História do Cinema [“Um Homem com uma Câmera” (1929)], ele não adiciona muitos recursos estéticos nesta produção da fase inicial de sua carreira: aqui, o tema é central, a necessidade de convencer a população soviética de que a guerra em curso era benéfica para eles, de modo que situações mostradas em Kiev ou Baku são exaltadas, ainda que vejamos atos horrendos, como os milhares de carcaças eqüinas apodrecendo numa estrada congelada…
Em “Navalny”, o tom é bem mais despojado, em seus intentos biográficos: o protagonista é deveras carismático (e narcisista) e responde em inglês às perguntas do diretor, evitando que o filme consagre-se como uma celebração de sua quase-morte. Ao invés disso, ele prefere comemorar a eficácia do jornalismo investigativo, visto que o jornalista búlgaro Christo Grozev – principal integrante da Bellingcat, grupo midiático especializado em investigações sobre desrespeitos aos direitos humanos e corrupção corporativa – é adicionado à sua equipe pessoal, depois que ele recupera-se da tentativa de envenenamento num hospital na Alemanha. A intrépida jornalista russa Maria Pevchikh também tem os seus feitos elogiados.
Visto que a cumplicidade entre o ativista titular – principal opositor do governo Putin – e o cineasta Daniel Roher é irrestrita, o documentário desenvolve-se de maneira espirituosa, a despeito das graves acusações desvendadas, aproveitando ao máximo o domínio que o personagem real tem das redes sociais [num determinado momento, ele expõe os aviltantes dados coletados sobre o seu envenenamento ao som de “How Bizarre”, da banda neozelandesa OMC]. Além disso, seus familiares são amplamente mostrados, a fim de reforçar uma comoção melodramática, que depende de situações corriqueiras, como o instante em que a esposa e os filhos de Navalny alimentam um pônei e um burro com cenouras. Isso sem contar as cenas espontâneas em que Alexei é aplaudido por transeuntes, pessoas que protestam na Rússia e/ou que coincidentemente estão no mesmo avião que ele…
Reforçando a tirania putiniana – que recusa-se a pronunciar o nome de Alexei Navalny –, este ativista e blogueiro confessa que não hesitou em aliar-se a militantes ultranacionalistas (com flertes neonazistas), pois considera válidas quaisquer alianças contra o seu furibundo rival político. A narrativa documental não investiga a fundo esta confissão, pois é filiada a uma campanha explícita em defesa do advogado, que é preso tão logo retorna à Rússia, por causa das violentas restrições à liberdade de expressão que ocorrem no País. É evidente que, em muitas oportunidades, este candidato tem razão, mas o filme parece um trabalho de assessoria de imprensa, tamanha a sua parcialidade na urgência denuncista em relação às atrocidades cometidas no governo russo atual.
Os caracteres ideológicos de ambos os documentários e a confluência de seus objetos nacionais (ambos falam sobre o poderio da Rússia), num cotejo com a situação beligerante envolvendo a Ucrânia, na contemporaneidade, obriga-nos a refletir sobre os múltiplos subgêneros que hoje encontramos sob a alcunha de documentários. Se antes associávamos estes filmes a fragmentos imediatos da verdade, hoje percebemos que eles têm muito mais a ver com os interesses de quem os realiza. Não que deixe de ser realidade, claro, mas os paradigmas definidores são assaz delicados: afinal, numa guerra, quem tem razão? E numa corrida eleitoral? Ao discordamos de um facínora, concordamos imediatamente com o seu opositor direto? Como é praxe acontecer nos parágrafos finais dos textos publicados nesta coluna, deixemos estas perguntas em aberto – e voltemos a elas através de um debate cotidiano, em que o diálogo é a principal ferramenta conciliadora…
Wesley Pereira de Castro.