Pandemia: Um CISNE NEGRO?
Cristina Vaz de Almeida
A pandemia provocada pelo vírus SARS – 2 mais conhecido por COVID – 19 parece ser um CISNE NEGRO, um conceito que se baseia na estrutura de aleatoriedade na realidade empírica (Taleb, 2007, p. 27).
Em 2007, Nassim Taleb descrevia um “CISNE NEGRO” como um acontecimento que reúne três atributos: 1) é atípico, encontra-se fora das nossas expetativas normais, porque nada que tenha ocorrido no passado pode apontar, de forma credível, para esta possibilidade; 2) reveste-se de um enorme impato; 3) e apesar do seu carácter desgarrado, a natureza humana faz com que construa explicações para a sua ocorrência depois de o fato ter lugar, tornando-o compreensível e previsível.
A pandemia provocada pelo COVID – 19 reúne aparentemente estas características de estar para além das expetativas (não acreditámos inicialmente que fosse tão letal, pelo menos o ser humano comum sem serem os matemáticos estatísticos), tem um enorme impato nas nossas vidas, e depois de acontecer está a ser profundamente explicado como previsível.
Taleb (2007) refere que este acontecimento prima pela raridade, impato extremo, previsibilidade retrospetiva, havendo assim uma combinação entre a “baixa previsibilidade e o forte impato” (p. 16).
AS OUTRAS PANDEMIAS, A GLOBALIZAÇÃO E OS MEDIA
Pese embora tivessem ocorrido outras epidemias em tempos passados (SARS, H1N1; MERS -COV; Zika, entre outros) e estas tivessem a característica de “pandemia” por o novo vírus ser isolado em humanos; haver transmissão pessoa a pessoa; haver manifestações clínicas de doença e; a epidemia afetar mais do que um país (OMS, 2020), estes não evidenciaram a nível global os efeitos desta pandemia COVID – 19. Provavelmente o sistema de comunicação mais eficaz que nos liga a todos no mundo, e por outro, os efeitos da globalização que nos permite movimentar para todo o lado a todo o tempo, propagou de forma explosiva o vírus e a informação sobre ele, assim como as suas consequências biopsicossociais, alastrando uma multidão com stress, ansiedade e depressões. Taquet, Luciano, Geddes e Harrison (2020) registam que, em pacientes sem história psiquiátrica anterior, um diagnóstico de COVID-19 foi associado ao aumento da incidência de um primeiro diagnóstico psiquiátrico nos 14 a 90 dias seguintes em comparação com outros eventos de saúde relacionados com gripe, outras infeções do trato respiratório, infeção da pele, distúrbios hepáticos e do trato urinário, e fratura de um grande osso.
É certo que a “gripe espanhola” (1918) matou em dois anos (janeiro de 1918 a dezembro de 1920), 30 milhões de pessoas e infetou cerca de 500 milhões de pessoas (um quarto da população mundial). O vírus era o H1N1.Trinta e nove anos depois, em 1957 surgiu a “gripe asiática” que, com “gripe de Hong Kong” (1968) mataram um total de 4,5 milhões de pessoas. Se compararmos com os dados da pandemia provocada pelo COVID – 19, em janeiro 2021 e a nível mundial, os dados de mortes provocadas pelo vírus e os casos registados eram os seguintes: 2.027.49 mortes e 94 826 490 casos registados mundialmente (Johns Hopkins, 17 jan 2021).
Em Portugal a 16 de janeiro 2021 existiam quase 540.000 casos, quase 8.000 mortes e quase 130.000 casos ativos com 638 pessoas internadas em cuidados intensivos. O início da vacinação em dezembro de 2020 permitiu 106 mil pessoas vacinadas no início de janeiro, sobretudo profissionais de saúde e idosos (RTP Notícias, 2021).
Taleb (2007) sublinha que a lógica do CISNE NEGRO torna aquilo que não sabemos mais relevante do que aquilo que sabemos , e estes acontecimentos podem suceder pelo fato de não serem esperados (p. 17). O autor (Taleb, 2007, p. 17) dá o exemplo do atentado às torres gémeas em setembro de 2001 nos EUA, sublinhando que se o risco fosse previsível não teria ocorrido ou poderia ser melhor controlado.
De uma forma um tanto irónica, Taleb revela que o problema “está na nossa mente” (p. 20) porque não aprendemos regras, apenas fatos única e exclusivamente, “desprezando o abstrato”(p. 20). Reforça ainda que os fatos demonstram que “pensamos muito menos do que na realidade julgamos, exceto, claro, quando pensamos sobre isso !” (p. 21). Este filósofo (Taleb, 2007) sugere que o ser humano precisa de estudar os acontecimentos raros e extremos, para poder perceber os acontecimentos mais vulgares (p. 23).
ENVIESAMENTOS E COMPORTAMENTOS
O ser humano tem tendência para os enviesamentos, com uma “tendência para generalizar a partir daquilo que vemos” (Taleb, 2007, p. 30). Tendemos assim: 1) a confirmar o erro de suposição, isto é, a olharmos para aquilo que confirma o nosso conhecimento e não a nossa ignorância; 2) para a falácia narrativa, ou como nos enganamos com os fatos da história; 3) a ser deixados levar pelas emoções, que muitas vezes atrapalham a nossa inferência; 4) a não dar atenção aos problemas das provas silenciosas, ou como a história vai ocultando os diversos os cisnes negros (Taleb, 2007, p. 30).
As perspetivas de crescimento dos números da pandemia foram de alguma forma relativizados, devido à tentativa inicial de “achatamento” da curva (DGS, 2020). O que acontece num enviesamento de ajustamento é que geralmente os ajustamentos que se fazem à estimativa inicial (“a âncora”) são sempre insuficientes, e a estimativa final está sempre influenciada por essa informação inicial que a pessoa reteve. O enviesamento de ajustamento são essas adaptações insuficientes que são feitas a partir da informação inicial (a “âncora”).
O excesso de confiança (overconfidence bias) refere-se à convicção (que podem ser também de um grupo de pessoas dentro das organizações) de que as suas capacidades próprias de raciocínio, de tomada de decisão e demais aptidões cognitivas são superiores ao que se verifica na realidade. Talvez o “achatamento inicial da curva de casos” anunciada pela DGS em março de 2020 fosse importante, mas não foi de todo suficiente. O Expresso (Jornal Expresso, 17 março 2020) sublinhada que “é urgente “achatar” essa curva para que o sistema de saúde consiga gerir recursos. Quem baixa a curva? A população. Como? Reduzindo contacto e ficando em casa citando a DGS: O que as pessoas fizerem neste momento é um fator decisivo para termos sucesso ou não.
A propósito desta mensagem de “reduzir o contato” (apenas, além das medidas de higienização das mãos, e mais tarde, de uso de mascara), e referindo Simões (1983) destaca-se o enviesamento da previsão a posteriori que descreve a tendência para assumir, depois do conhecimento de um acontecimento ou dos seus resultados, que estes são inevitáveis e poderiam ter sido facilmente prognosticados (p. 259). A assunção por parte da população da existência da pandemia, por um lado e do confinamento, acabou por ser uma informação limitativa relativamente aos efeitos futuros desta doença. Nesta altura todos os investigadores virologistas sabiam os efeitos das pandemias anteriores. A sua inserção na difusão dos media, como comentadores, poderia ter sido ainda mais aproveitada, para poderem intervir no sistema de saúde e na sua regulamentação que, entretanto, foi sendo anunciada pelas autoridades sanitárias. Várias entidades, como o Conselho das Escolas Médicas foram críticos de algumas medidas, como o atraso na utilização de máscaras em locais fechados, além de considerarem as medicas insuficiente quanto à evolução previsível da pandemia (Público, 2020).
A 17 janeiro de 2021, e 10 meses depois, a evidência salta à vista. O coordenador de Cuidados Intensivos Cirúrgicos do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental assume a gravidade inédita da situação nos hospitais de Lisboa (Expresso, 17 janeiro 2021) . António Pais Martins, médico de Cuidados Intensivos altera: Não podemos falar em colapso, mas o flagelo é enorme (Expresso, 17 janeiro 2021).
Mas depois do acontecimento e pela necessidade de se encontrarem caminhos, várias vozes se têm erguido para uma resposta mais global e efetiva ao combate a esta e às próximas pandemias.
22 ORIENTAÇÕES CLARAS PARA UMA MUDANÇA POSITIVA NA ESTRATÉGIA DE COMBATE A PANDEMIAS
Destaca-se pela sua acutilância, o médico Luís Campos, diretor do Hospital S. Francisco Xavier, que em junho de 2020, refletia de uma forma profunda sobre a resolução de um conjunto de problemas relacionados com a pandemia (Público, 3 junho 2020). A 3 de junho 2020 Campos refere que “a possibilidade de uma pandemia era previsível, e temos de nos preparar para novas ondas”, pois em 2003 Portugal passou pelo SARS, no ano seguinte pela gripe aviária (H5N1), em 2009 a gripe A (H1N1), em 2012 o MERS -COV, em 2005 pelo Zika vírus. Embora esta sistematização das ideias não estivesse numerada na sua crónica, Campos (2020), anunciava que seriam necessários os seguintes passos, sugerindo um total de 22 orientações para uma pandemia:
1) Ter planos de contingência e catástrofe;
2) Possuir uma reserva estratégica nacional de equipamentos para emergências;
3) Reforçar a capacidade de produção de medicamentos em laboratórios nacionais;
4) Contratar pessoal deficitário;
5) Corrigir de défices estruturais, como o número de camas de cuidados intensivos (média de 5,2 camas por 100.000 habitantes em contraste com a média europeia de 11,5);
5) Manter em paralelo os cuidados de saúde de outras patologias;
6) Fortalecer o Serviço Nacional de Saúde (com contratação, remuneração justa);
7) Proceder a uma atualização tecnológica e organizacional;
8) Contar tanto com os recursos públicos como com os privados;
8) Revitalização urgente da saúde pública; 9)
9) Implementação de uma rede de saúde mental para resposta ao incremento de casos de ansiedade e depressão;
10) Flexibilidade nas estruturas de saúde e na sua organização (readaptação de áreas, escalabilidade; diferenciação de circuitos; isolamento;
11) Planeamento de recursos humanos, com o necessário aumento dos internistas (especialidade que permite a versatilidade de resposta face à incerteza de epidemias e pandemias);
12) Flexibilizar as estruturas (rígida, vertical e inadequada) dos hospitais para fazer face, por exemplo, às multimorbilidades e aos doentes idosos que devem ser tratados de forma holística, sem ser fragmentada, de forma contínua, em oposição ao tratamento episódico e de forma proativa , e por isso sem ser reativa;
13) Criar áreas comuns departamentais nos hospitais onde serão admitidos todos os doentes urgentes, geridos pela medicina interna
14) Criação de equipas de hospitalização domiciliária, liderada pela medicina interna (libertando camas de hospitais)
15) Articulação entre os vários níveis de cuidados: proteção civil, emergência pré-hospitalar; cuidados primários; cuidados continuados; lares, assistência social regional e nacional;
16) Comunicação entre as várias estruturas de níveis de cuidados com cadeias de responsabilidade comuns e com participação do social com a saúde;
17) Uma reavaliação e resolução do problema dos idosos internados em hospitais, já com altas hospitalares (1551 idosos internados já com alta, nos hospitais do SNS em fevereiro de 2020);
18) Debater e encontrar caminhos para o problema do desemprego, que desencadeia mais problemas na saúde mental, doença crónica, no âmbito da pandemia, pois é um verdadeiro determinante da saúde
19) Criação de sistemas locais de saúde e de assistência social com união dos vários níveis de cuidados, para um olhar e gestão comum (mesmo orçamento e centralização nas populações)
20) Uma visão reformulada na gestão, evitando redundâncias (de exames, combate ao sobrerastreio, sobrediagnóstico, sobretratamento);
21) Valorizar e investir adequadamente na telemedicina e na telesaúde (economia de custos, de tempo) mas atendendo à importância da comunicação netes novos meios digitais;
22) Maior clareza e técnicas nas campanhas de comunicação em saúde.
Tal como Taleb (2007) referia que um evento desta natureza, um verdadeiro CISNE NEGRO, depois de ocorrer torna-se compreensível e previsível, e por isso, seria bom continuar a ouvir e reunir com peritos de várias áreas para se poderem organizar estratégias, como as enunciadas por Campos (2020) e outros, que permitam acionar ainda mais a máquina da mudança, antes que surge outro CISNE NEGRO , ainda mais impactante do que este que agora sentimos.
O viés de disponibilidade diz que as pessoas atribuem uma maior importância relativa às informações que estão mais acessíveis por estas serem mais fáceis de recordar. E a próxima reflexão será sobre os efeitos da comunicação massiva sobre “depressão” no estado emocional das pessoas durante a pandemia.
Referências
Campos, L. (2020). Que lições da pandemia para o futuro do sistema de saúde. Jornal Público [online]
Johns Hopkins (2021) Coronavirsus resource center . Disponível em https://coronavirus.jhu.edu/map.html
Jornal Expresso (17 março 2020). Covid-19. Os portugueses têm agora uma missão: “achatar a curva”. [online] Disponível em: https://expresso.pt/coronavirus/2020-03-17-Covid-19.-Os-portugueses-tem-agora-uma-missao-achatar-a-curva-2
Jornal Expresso (17 janeiro 2021). Covid-19 António Pais Martins, médico de Cuidados Intensivos: “Não podemos falar em colapso, mas o flagelo é enorme”. [online] Disponível em: https://expresso.pt/coronavirus/2021-01-17-Covid-19-Antonio-Pais-Martins-medico-de-Cuidados-Intensivos-Nao-podemos-falar-em-colapso-mas-o-flagelo-e-enorme
Público (2020). Covid-19: Conselho de Escolas Médicas critica DGS pela posição sobre máscaras.(consultado a 17 janeiro 2021) Disponível em: https://www.publico.pt/2020/04/03/sociedade/noticia/covid19-conselho-escolas-medicas-critica-dgs-posicao-mascaras-1910805
Taquet,M., Luciano, S., Geddes, J.R., & Harrison, P.J. (2020). Bidirectional associations between COVID-19 and psychiatric disorder: retrospective cohort studies of 62 354 COVID-19 cases in the USA. Lancet,
Taleb, N.N (2007). The Black Swan. Portugal. Publicações D. Quixote
RTP Notícias (2021). A evolução da COVID -19 em Portugal [online] Disponível em: https://www.rtp.pt/noticias/pais/a-evolucao-da-covid-19-em-portugal_i1213879
Simões, M.R. (1993). Heurísticas, Enviesamentos e. Erros Inferenciais na Mecânica da Avaliação Psicológica. Análise Psicológica, 2(Xi): 253-266.
WHO (2020). Mental health and psychosocial considerations during the COVID-19 outbreak. (Acedido em 17 janeiro 2021) Disponível em:
Público (2020). Covid-19: Conselho de Escolas Médicas critica DGS pela posição sobre máscaras.(consultado a 17 janeiro 2021) Disponível em: https://www.publico.pt/2020/04/03/sociedade/noticia/covid19-conselho-escolas-medicas-critica-dgs-posicao-mascaras-1910805
Imagem D.R. https://www.itnews.com.au/