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Palavras intraduzíveis e a sua contribuição para o entendimento inter-cultural: o caso da saudade

Palavras intraduzíveis e a sua contribuição para o entendimento inter-cultural: o caso da saudade

Num mundo marcado por diferenças e clivagens, a compreensão do significado da palavra saudade poderá contribuir para aumentar a empatia cultural, e, deste modo, ajudar ao estabelecimento de relacionamentos mais profícuos e construtivos entre nações, sociedades, organizações e pessoas.

Quando se fala de saudade, evoca-se a legião de emigrantes que partiu de Portugal nos anos 60 e 70, por falta de trabalho, mas também a dos anos 80 e 90, em busca de carreiras internacionais, e os mais recentes, já no século XXI, pela falta de oportunidades devido à crise. A diáspora portuguesa parece ser uma inevitabilidade, mas não é certamente a única. Que o digam os leitores deste texto, das diásporas guineense, timorense, ou angolana, por exemplo.

Ninguém parece saber ao certo a origem da palavra saudade, mas terá sido Teixeira de Pascoaes a conferir-lhe o estatuto de qualidade definidora da alma portuguesa. É também ponto comum julgar que a saudade é algo único às culturas falantes do português, mas, de facto, tal não é verdade. Tim Lomas, psicólogo da Universidade de East London, e responsável pela compilação de termos intraduzíveis (para inglês), encontra conteúdos similares em palavras no Galês (hiraeth), russo (toska: tоска), e japonês (natsukashii: 懐かしい), entre outros casos. A galega morriña e a mirandesa suidade são as irmãs gémeas da saudade, e provavelmente suas únicas traduções diretas. E apesar de se julgar menos sonoras ou harmónicas expressões como “I miss you”, “tu me manques”, ou “te estraño”, a realidade é que os povos lusófonos não são os únicos a sentir saudades de pessoas, lugares ou tempos idos. Nem tampouco serão os únicos a desbundar ou a desenrascar, dois outros termos presentes na coletânea de Lomas. E, todavia, a palavra saudade está para o léxico mundial como Cristiano Ronaldo está para o futebol: é, sem sombra de dúvida, o mais internacional dos vocábulos de Camões.

O Wikipedia define saudade como um estado emocional de nostalgia ou melancolia profunda, dirigido a alguém ou algo que está ausente, mas de quem ou que se gosta. É nas artes, todavia, que a noção de saudade tem inspirado as mais belas definições, não pela força de expressão, mas pela expressão da força da emoção que subjaz ao inefável vocábulo. A canção Sodade (Cesária Évora), o poema A Menina do Mar (Sophia de Mello Breyner), ou a pintura Saudade (Almeida Júnior), disso são sublimes exemplos.

A palavra surge também no Dicionário de Intraduzíveis, da filóloga e filósofa francesa Bárbara Cassin, juntamente com outras centenas de palavras oriundas de várias línguas. A intraduzibilidade (para inglês ou francês) de termos é, pois, comum, e reflete a necessidade comunicacional das culturas humanas em lidar com contextos e realidades diversos. Assim se explica a mais de meia centena de palavras relacionadas com neve, entre o povo Inuit, ou as mais de mil para rena, entre os Sami. Tal exuberância linguística não é apenas normal, mas também fundamental, dado que a linguagem adapta-se às ideias e vivências dos que as falam.

Mas que substância existe numa simples forma verbal, que tanto possa amparar o entendimento entre os povos? A referida Cassin, uma nativa francesa, parece captar um sentido profundo do lusófono substantivo, ao escrever que, “moldada por um sofrimento genuíno da alma, a palavra saudade tornou-se (…) particularmente adequada para expressar a relação da condição humana para com a temporalidade, a finitude, e o infinito”.

É com a linha argumentativa de Lomas que se torna visível todo o potencial harmonizador de conceitos como saudade. Lomas começa por perguntar o que não se tem, quando uma palavra não existe numa língua? Ou seja, o que perdem os ingleses, alemães, ou americanos, por não terem saudade no seu dicionário? E, pelo mesmo raciocínio, o que perdem macaenses, moçambicanos, e são-tomenses, por não conseguirem reproduzir as 16 variantes para expressar felicidade, que existem na língua Urdu? Lomas sugere que a riqueza conceptual destes vocábulos permite aos seus utilizadores comunicar emoções e sentimentos profundos, de comunidade, felicidade, e transcendência. Num dos seus trabalhos, ele lista 216 palavras intraduzíveis que expressam bem-estar (com saudade no catálogo). Mas cada uma é igualmente única, pois expressa a individualidade de uma cultura inteira em lidar com o bem-estar.

Lomas defende que a aprendizagem destes conceitos tem o potencial não apenas de expandir o mundo emocional e espiritual, mas também de desenvolver a compreensão e empatia para com os utilizadores nativos das palavras. Um exemplo da lista é a palavra zulu ubuntu, cuja tradução simples é “eu sou porque tu és”, e que remete para uma conceção muito especial da pessoa humana: cada indivíduo está intimamente conectado com todos os outros, numa teia humanista em que, sem se perder a individualidade, se concebe a humanidade como o bem maior. Nelson Mandela descreve o que é o ubuntu, num vídeo a circular na internet. Outros casos de vocábulos poderosos mas de difícil tradução e entendimento incluem a chinesa tao (道), a māori aroha, a persa ahura mazda (مزدا اهورا ), ou a grega eiréné (εἰρήνη).

Resta a questão de saber se é possível apreender tais constructos, presentes em todas as línguas? Apesar de encerrar um significado complexo, a magia da palavra saudade parece poder ser compreendida, apreendida, e sentida por nativos de outras culturas e nações. Viver num dos países da lusofonia, ou comungar com nativos de qualquer um dos países dessa comunidade, deve bastar para se começar a desvendar o mistério do que é sentir-se saudade. Por experiência própria, e à força de contatos regulares com a cultura finlandesa e visitas a esse país escandinavo, o autor deste texto compreende agora melhor o que significa sisu, uma das intraduzíveis, e definidora do ser finlandês. Sisu exprime uma emoção poderosa, de coragem interior e resiliência estoica, traduzíveis em ação, a fim de fazer frente a situações particularmente adversas. A força deste conceito é tal, que Nylund lhe dedica um livro inteiro, com um título revelador: “Sisu: The Finnish Art of Courage”.

Saudade é uma palavra filha de amor, tanto que alguém a definiu como o amor que fica, quando alguém ou algo se vai embora ou desaparece. É um amor nostálgico, por vezes melancólico, ou até doloroso. Possui múltiplas variantes, para com pessoas, locais, animais, ou experiências, transcende o contato sensorial com o objeto da saudade, e não se verga a critérios de espacialidade, temporalidade, e racionalidade, dado que pode ter-se saudade dos que partiram para sempre, de tempos que não voltam mais, ou até de si próprio. Cá dentro, sente-se uma dor alegre (ou uma alegria dolorosa?), mas tal apenas é sentido porque há um sentimento de amor na origem da saudade.

 

Imagem (jarmoluk) de uso gratuito em Pixabay

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