O presente texto foi inspirado por duas viagens separadas por 15 dias, que o autor realizou recentemente a Niamey e a San Francisco. Niamey é a capital do Níger, um país islâmico situado na África Ocidental, com uma população de 22 milhões de pessoas, e uma área de um milhão e 300 mil quilómetros quadrados, dos quais 80% é ocupado pelo deserto do Saara. O país é um dos mais pobres do mundo, ocupando a 188ª posição no Índice de Desenvolvimento Humano.
San Francisco é uma metrópole norte-americana na costa oeste do país, na Califórnia. Os Estados Unidos posicionam-se entre os 12 lugares cimeiros no índice já referido, sendo que a Califórnia é o terceiro estado em área (420 mil quilómetros quadrados), e o primeiro em população (perto de 40 milhões de habitantes). Outras grandes urbes na região incluem Los Angeles, San José, San Diego e Sacramento, a capital do estado.
Em todas as comparações que se ensejem realizar, os abismos entre os dois países e as duas cidades não poderiam ser maiores. As diferenças são tão substanciais, que custa a acreditar que estes dois povos habitem o mesmo planeta. Na verdade, provavelmente para os habitantes de cada local, os outros não existirão senão como imagens de realidades distantes nas notícias ocasionais.
E, porém, estas duas cidades assemelham-se no que concerne as suas populações de pobres.
No Níger, com 40% da população do país a viver com menos de 1 dólar por dia, a malnutrição e a fome ainda são dois problemas por resolver. Na capital vivem quase 2 milhões de pessoas sem acesso às mais elementares infraestruturas de uma sociedade: água canalizada ou potável, eletricidade, estradas pavimentadas, serviços de limpeza urbana, cuidados de saúde, e escola para todos. O número de sem-abrigo não está contabilizado num país sobre o qual é difícil obter estatísticas, mas a avaliar pelos milhões de deslocados e refugiados nos países que fazem fronteira com o Níger, a situação no país não deverá ser muito diferente.
Em San Francisco as estatísticas são rigorosas, como é de esperar num país desenvolvido. De acordo com o site oficial do Governo Estatal de San Francisco (https://sfgov.org), em 2019 existiam 8.011 sem-abrigo, mais 14% do que a contagem efetuada em 2017. A Califórnia tem 20% da população total de sem-abrigo do país, com perto de 115 mil indivíduos entre os 600 mil em todos os EUA.
A situação dos pobres em Niamey e dos sem-abrigo em San Francisco – e, em boa verdade, em qualquer outro local no mundo –, é chocante para qualquer um que testemunhe a condição a que pode chegar um ser humano. Deambular sozinho por ruas cheias de gente, lutar diariamente por umas moedas, remexer o lixo em busca de restos de comida e roupa, e dormir noites sem fim ao relento, constitui a realidade de milhões de pessoas, seja nos EUA ou no Níger.
Mas no que respeita a San Francisco, a perturbação é dilatada devido a três aspetos. Em primeiro lugar, esta cidade onde muitos se injetam em plena luz do dia, ou cheiram cola num saco de papel, é a mesma onde foram fundadas e/ou estão localizadas corporações conhecidas mundialmente: Apple, Alphabet (Google), Facebook, Visa, Chevron, Oracle, Intel, Cisco Systems, e Netflix. As universidades de Stanford, Berkeley e San Francisco, entre outras, também contribuem para este fantástico cenário de criatividade e empreendedorismo (e riqueza) de toda a região de Silicon Valley. Pasma, por conseguinte, saber que nesta região surgiram e continuam a surgir algumas das ideias mais brilhantes para informatizar e digitalizar o planeta, mas, ao mesmo tempo, ninguém parece ser capaz de resolver o problema daqueles que desceram ao grau mais baixo de dignidade.
Relacionado com o anterior, o segundo aspeto refere-se ao triste contraste entre os que tudo têm, e os que nada possuem. Aqui reside provavelmente uma das contradições mais aflitivas do moderno capitalismo ultra liberal de inspiração americana: se por um lado o sistema é capaz de gerar uma riqueza sem precedentes, por outro lado encarrega-se de a distribuir da forma mais desigual possível. Ademais, as estruturas que sustentam o sistema são incapazes de resolver este e outros problemas semelhantes. Em San Francisco, tropeça-se neste fosso e nesta desigualdade a cada rua que se calcorreia.
Por fim, é igualmente motivo para estupefação o grau de invisibilidade dos sem-abrigo face aos que têm um abrigo. De facto, as 8 mil pessoas sem teto não estão localizadas nos confins da cidade, longe dos olhos e corações dos restantes milhões de habitantes. Eles vivem entre eles, ocupam os passeios com tendas improvisadas ou cartões a servir de cama no passeio, e fazem toda a sua vida entre os arranha-céus, as lojas, as empresas, as ruas e os carros de alta cilindrada. Mas para os que têm casa e trabalham, esta outra população parece inexistir, não obstante muitos deles gritarem em plena rua, disparatarem sem razão aparente, ou caminharem tropegamente enquanto falam consigo mesmos, sinais de deterioração mental provocada pela droga, pelo álcool, pelo isolamento social prolongado, ou por qualquer outra razão.
A aceitação tácita da situação destes transparentes (*) é análoga à dos intocáveis, cujo termo foi celebrizado por Mahatma Gandhi para designar os Harijans (Filhos de Deus) ou Dalit, ou seja, aqueles pertencentes à casta mais degenerada no complexo sistema de castas das sociedades indiana, nepalesa e paquistanesa. Os Dalit são os impuros, os desprezíveis, os ostracizados, e também revelam as contradições de um sistema social e económico que impõe divisões às pessoas de uma mesma sociedade, frequentemente à nascença.
A ironia ditou que na zona das docas em San Francisco, nas traseiras do Ferry Building, esteja uma estátua de Gandhi (**), cuja placa informativa exibe um dos seus muitos aforismos: “a minha vida é a minha mensagem”. Tal como a vida deste político indiano foi a sua mensagem, também é justo concluir-se que as vidas destes milhares de sem-abrigo são as suas mensagens. E estas mensagens são muito fortes. Elas dizem que, apesar de muito se ter evoluído nos últimos 70 anos (desde o assassinato de Gandhi em 1948), as sociedades do século XXI ainda não conseguiram resolver as tremendas desigualdades entre os extremamente pobres e o resto da população.
(*) “Os Transparentes” é uma obra de ficção de Ondjaki, um escritor angolano que recebeu o Prémio José Saramago em 2013 por este romance que relata a dura vida nas cidades (Luanda) da maioria da população, enquanto uma pequena elite se preocupa apenas com o seu bem-estar.
(**) A imagem de destaque deste artigo é uma foto tirada pelo autor, em fevereiro de 2020, aquando da visita a San Francisco.
Uma resposta
Excelente artigo: parabéns!
E o contraste é tal que, muito provavelmente, não se vêem sem-abrigo no Sudão. Este é um drama crescente nas sociedades industrializadas, cuja solução está longe de se limitar a deitar dinheiro em cima do problema ou, como se faz em Portugal, se nomear um gestor para evitar que mais ninguém tenha de se ocupar do assunto