É preciso dizer, antes de iniciar este texto, que o mesmo pode conter algum spoiler. Tentarei o mínimo possível. Se ainda não viu o filme e prefere vê-lo antes de ler o texto, recomendo que o faça.
Bem, vamos lá. Joker, conhecido no Brasil como Coringa. É uma personagem da DC Domics e que pertence ao mundo do Batman. Faz parte da sua história, inclusive, da sua origem, pois foi quando Arthur Fleck assume-se como Joker e passa a ser visto pela sociedade de Gotham City como um símbolo contra a exclusão social, que os pais de Bruce Wayne, que mais tarde vem a se tornar Batman, são assassinados.
Este texto não é uma crítica de arte. Não se pretende a isso. Também não vou mencionar a violência explícita que o mesmo apresenta, até porque não é o primeiro que o faz. Clube de Lutas, Laranja Mecânica, Pulp Fiction e outros já assim o fizeram. No entanto, não é este o caminho que aqui quero trilhar.
O que intenciono é levantar algumas reflexões que foram apresentadas neste filme; questões que chamam atenção pela sua não ficção e que se faz presente nas mais diversas sociedades.
Articulando a realidade com o filme Joker, vemos um jovem adulto com problemas psicológicos tentando se integrar em uma sociedade que não o acolhe, seja porque esta sociedade não está preparada para integrar pessoas com deficiências, pessoas com qualquer tipo de diferença, seja porque esta sociedade está tão doente que ela própria é a diferença em si, na medida em que exalta os pequenos grandes grupos econômicos em detrimento da grande parte da população, que é excluída socialmente, invisibilizada.
Gotham City está em caos, com greves, lixo e ratazanas por toda a cidade. Época de eleição e políticos que se voltam sempre à elite prometendo melhorias nunca cumpridas às classes subalternas. Seria este cenário tão diferente do que ocorre em diversas cidades, estados, países?
Arthur Fleck profissionalmente tenta ser comediante e não obtém qualquer sucesso. Nas várias empreitadas como palhaço, também falha por diversas razões, sobretudo em razão de sua deficiência, acabando por ser alijado de vários circuitos. Remata por matar três pessoas da alta sociedade no retorno de um dos trabalhos, no qual acabara de ser demitido… mais uma vez. A razão pela qual o fez não é a mesma que o elevou à condição de ícone da libertação contra a opressão. Naquele momento exato, não foi uma manifestação política, mas um grito de dor daquele que estava soterrado em desespero, em isolamento há anos e em conjuntura exata de mais uma violação explícita de sua dignidade.
Arthur somente tem sua mãe, que também padece de demência. Até que descobre que esta também não era sua mãe biológica e que sua doença psiquiátrica foi causada por inúmeras sevícias, suplícios contra seu corpo físico praticadas pelo namorado da mãe adotiva, que nada fazia para impedir. Arthur não nasceu assim. Outro destino poderia ter tido.
Este é o ponto principal que quero aqui trazer à reflexão. Como queremos que nossas crianças cheguem à fase adulta? Claro que há componentes específicos de cada um e não vou entrar na esfera psicológica de cada indivíduo, mas antes na sociológica e na dos direitos humanos.
O que levou Arthur Fleck a se tornar o Joker (Coringa)? Nesta versão (sim, há outras!), Arthur era um rapaz que a todo custo tentava se integrar na sociedade. Falamos aqui de diferença por deficiência mental, onde o louco não tem espaço, e de diferença por miséria, por pobreza, que leva à exclusão social e consequente invisibilização social. Falamos aqui de violência doméstica que, voltando para o filme, foi a causa da demência de Arthur.
A grande questão que devemos refletir é sobre o tipo de sociedade que vivenciamos, que está doente, como disse acima. Um tipo de sociedade no estilo do Dr. Simão Bacamarte, o Alienista, de Machado de Assis, que constrói o seu manicômio para lá colocar aqueles que são diferentes (loucos), sob os aplausos do restante da sociedade até o momento em que esta mesma sociedade se escandaliza e se desespera quando o Alienista passa a enxergar a loucura em todos da cidade.
De forma alguma, relaciono loucura à violência, pobreza à violência. Antes pelo contrário. Esses rótulos são outras formas de estigmatização e de invisibilização social. No entanto, no filme vemos claramente como é a vida de uma criança seviciada, sofrida, que experiencia a violência doméstica face-a-face, no seu cotidiano, em contraposição, voltando ao filme, com Bruce Wayne, no qual nem se pode tocar, cercado de regalias e oportunidades que os demais não têm e não terão. Não nesta sociedade doente e que crê piamente que todos são iguais e que ainda basta o mérito para que todos ocupem o mesmo lugar ao sol.
Quantos Arthur Fleck estão agora por aí? Fora das telas! No mundo real… pertinho de nós. De mim. De você. O que eu estou fazendo para que ele não se torne um Joker (tenho algumas ideias em mente)? E você?
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