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Já dizia o imortal: “o passado é para refletir, não para repetir”

Já dizia o imortal: “o passado é para refletir, não para repetir”

Num dos capítulos mais emocionantes de “Cinema de Invenção”, livro essencial sobre filmes brasileiros realizados à margem do financiamento estatal, o crítico Jairo Ferreira (1945-2003) dedicou ao cineasta Luiz Rosemberg Filho o epíteto de realizador associado à “transfiguração poética”. No referido capítulo, o autor transcreve alguns trechos de uma volumosa correspondência entre ele e o cineasta, destacando o início de uma carta bastante específica, escrita em abril de 1983. Nesta carta, o diretor manifesta o seu credo: “como é difícil nos fazermos entender!!! Como é difícil suportar a lógica!!! Fomos e somos amigos no silêncio & nas imagens. Ao longo de nossas vidas, temos passado por muitos maus momentos. E resistimos. Resistimos pelo prazer, pela luta, pelo Cinema. Claro que ninguém é perfeito. Mas é preciso RESISTIR”.

Na manhã de um domingo, 19 de maio de 2019, Luiz Rosemberg Filho morre, aos 76 anos de idade. Infelizmente, por ser um cineasta periférico num país subdesenvolvido, a noticiabilidade deste falecimento ficou restrita a nichos bastante restritos. Mas a filmografia que ele nos concedeu em vida é digna de antologia, havendo, inclusive, um filme pronto ainda não lançado: “O Bobo da Corte”. Seu filme mais recente, “Os Príncipes” (2018), até então foi exibido apenas num festival cinematográfico pernambucano, de modo que seu filme mais elogiado nos últimos anos foi o anti-épico “Guerra do Paraguay” (2016). Mas, antes de falarmos sobre ele, convém recapitularmos a extrema importância deste diretor em relação ao desenvolvimento expressivo do cinema brasileiro.

Depois de uma incursão no filme coletivo “América do Sexo” (1969), Luiz Rosemberg Filho lançou a obra-prima “O Jardim das Espumas” (1970), em que servia-se de um flerte experimental com a ficção científica para criticar, de maneira estridente, a apatia política de alguns manifestantes do período. O mesmo ímpeto criativo pôde ser conferido no ainda mais radical “Imagens” (1972), antes de ele aderir à zombaria de cariz pornochanchadesco em “A$suntina das Amérikas” (1976). Sua obra seguinte, “Crônica de um Industrial” (1978), talvez seja o píncaro de sua obra, em sua ressignificação do horror existencial classista, tanto que foi radicalmente perseguido pela censura ditatorial, impedido de ser exibido em vários festivais importantes de cinema. Em “O Santo e a Vedete” (1982), retoma o tom pornochanchadesco e marginal anterior, mas soa repetitivo, a gradual reabertura democrática do país parece ter arrefecido a sua criticidade implacável. E, depois deste filme, percebemos um hiato…

Dedicando-se, na década de 1990, a uma série de ensaios videográficos sobre temas abordados em seus filmes anteriores, Luiz Rosemberg Filho retornaria aos longas-metragens com o excessivamente teatral “Dois Casamentos” (2015), mas a recepção crítica foi tênue. O que, definitivamente, não aconteceu com o devastador “Guerra do Paraguay” (2016), sobre o qual falaremos – e recomendaremos enfaticamente – a partir de agora: filmado num preto-e-branco belíssimo, este filme inicia-se com o longo plano de três mulheres que puxam, visivelmente extenuadas, uma pesada carroça. Paralelamente, acompanhamos a comemoração solitária de um soldado, que retorna exitoso [1864-1870]. No momento seguinte, estes personagens irão encontrar-se: a matriarca das mulheres falece e o soldado conversa com as duas irmãs restantes, esfomeadas e continuadoras de uma verve teatral afiliada ao dramaturgo alemão Bertolt Brecht (1898-1956), ao qual elas referem-se com pai. Logo percebemos que estamos num tempo fílmico muito próprio: absolutamente anacrônico e alegórico, de modo que os embates dialógicos entre o soldado e as atrizes desembocarão numa devastadora crítica a toda e qualquer guerra. Uma exortação do pacifismo que, por sua vez, não refuta o extremo realismo das derrotas políticas hodiernas: é impossível ficar emocionalmente incólume após aquela atordoante seqüência parajornalística final.

Se, por um lado, o soldado insiste que as mortes acumuladas na guerra e que participara fazem parte de sua lógica empregatícia, por outro, a atriz refuta esta defesa honorífica, definindo o trabalho dele como “uma força conservadora necessária à desmobilização de um povo”. Não obstante o evento bastante demarcado que intitula o filme, o filme problematiza as falácias discursivas que estavam em voga no momento da realização da obra e que, hoje em dia, desembocaram no bolsonarismo e numa conjuntura que torna evidente o depoimento de que “amar é mais difícil que matar. Matar é fácil, qualquer idiota o faz sem pensar”. O soldado insiste em glorificar as suas láureas bélicas, mesmo quando enfatiza assassinatos hediondos cometidos em nome de um imperador aquisitivamente favorecido e indiferente ao sofrimento geral do povo. As duas atrizes, por sua vez – uma delas psicologicamente perturbada – tentam resaltar a importância basilar da cultura na formação comunitária do indivíduo. Numa metáfora inevitável da situação atual, logo saberemos quem interromperá o debate, ciente de que não pode vencê-lo com a sua sangrenta e repetitiva exigüidade de argumentos. Em vida, Luiz Rosemberg Filho fez o contrário: morreu fiel aos seus princípios discursivos, em atividade combativa em prol do cinema brasileiro. Por isso, ainda que a sua passagem pela Terra não tenha sido devidamente midiatizada, sua imortalização e genialidade são aqui ressaltadas: parabéns pelo ‘corpus’ filmográfico e obrigado por existires!

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