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Foi o texto da minha conferência no colóquio realizado em 5-6 de Junho de 2015 e dedicado a Agostinho da Silva como o rosto da Lusofonia, na Universidade Lusófona (Lisboa). O tema fez o título de uma obra desse pedagogo, entrevistado por Gil de Carvalho e Manuel Hermínio Monteiro, que juntaram a informação da “longa conversa” em 3 cassetes de 1 hora cada, o essencial ou os aspetos centrais do pensamento de Agostinho da Silva. Esta entrevista designada “conversa” em 1987 foi transcrita em 48 páginas impressas, às quais foram acrescentados outros textos pela editora Assírio e Alvim, em 1994, o ano em que Agostinho da Silva faleceu.
“Ir à Índia sem abandonar Portugal” não é nenhuma viagem física, mas somente uma visão da sociedade do Futuro, não muito diferente da História do Futuro de Padre António Vieira. Trata-se de mais uma metáfora no exotismo lusófono universalista, na série de metáforas que enchem as obras de Camões, Vieira e Agostinho da Silva.
Ao ouvir no colóquio o Professor Doutor Paulo Borges sobre a lusofonia universalista de Agostinho da Silva, vi refletidas na sua conferência de abertura várias ideias que comungo. Gostei particularmente do seu aviso final, alertando-nos para as tentações de utilizar ou instrumentalizar o pensamento agostiniano para encobrir qualquer geoestratégia neo-colonialista ou pós-colonialista. Decidi não intervir no fim da conferência como fizeram alguns outros ouvintes, mas limitei-me acumprimentar Paulo Borges, deixando para hoje as minhas reflexões sobre matérias de concordância e discordância.
Lembro-me de eu ter citado Agostinho da Silva sobre “Ir à Índia sem abandonar Portugal” numa conferência em que participei na Universidade de Colónia na Alemanha em 1998, no V Encontro Luso-Alemão intitulado Portugal, Índia e Alemanha , no contexto das comemorações de Vasco da Gama. A minha conferência centrava-se sobre “as impressões portuguesas da Índia: realidade, fantasia e auto-retratação”, e pode ser lida nas Actas publicadas desse colóquio pela Universidade Nova de Lisboa.2
Para além de buscar a classificação de portugueses na obra de Fernando Pessoa, referia-me aos portugueses “vários” de Agostinho da Silva, incluindo os “capatazes” e “biscateiros”. Citei também Eugénio Lisboa, quando escreveu que “a luz que ilumina a diferença do outro, do mesmo passo nos destapa melhor a nós próprios… a epopeia pode arrastar consigo, também, o sofrimento, a perplexidade e um agudo auto-reconhecimento”. Ouvi Eugénio Lisboa a falar sobre isto numa conferência em Santa Barbara, Califórnia, em 1995. Ele falava sobre “Triunfo, Medo e Silêncio”3.
Em todas as versões de lusofonia, mesmo naquela que se glorifica pela sua vertente universalista, vejo doses variadas de “auto-retratação”, uma estratégia mais ou menos velada, e geralmente inconsciente, de dominação da realidade que ultrapassa as capacidades dos portugueses. Os seus recursos coletivos não lhes permitem satisfazer tudo o que desejam. Pregam aos quatro ventos os sucessos iniciais, mas praticam sigilo acerca dos fracassos e fraquezas. Tem havido pouca simpatia por uma história crítica. Pouco ou nada se ensina nas escolas da participação crítica e decisiva dos italianos e alemães que possibilitaram os Descobrimentos portugueses e investiram nas armadas e compra das especiarias.
Recomendo uma leitura das “onze teses por ocasião de mais uma descoberta de Portugal”, que é 3º capítulo no livro de Boaventura de Sousa Santos, intitulado Pela Mão da Alice (1994). Na segunda tese refere aos discursos eruditos, que ele designa mitos ou ideias gerais de um país sem tradição filosófica nem científica. Considera o excesso mítico, de que a lusofonia universalista faz parte, como um mecanismo de compensação do défice de realidade, típico de elites culturais fechadas e marginalizadas no brilho das suas ideias. São uma produção de elites em número reduzido (por isso não passam de meia dúzia os lusófonos universalistas na massa do povo analfabeto,hoje felizmente e minimamente alfabetizado e afastado de decisões políticas e culturais. Não é de admirar que Camões fosse degradado para a Índia, ou Fernando Pessoa andasse pela África do Sul e fizesse os heterónimos falar muito daquilo que não foi capaz de atribuir a si próprio, ou Vieira e Agostinho da Silva andassem pelo Brasil durante muitos anos das suas vidas. Boaventura de Sousa Santos qualifica a hiperlucidez das suas ideias e utopias uma cegueira iluminada. As ciências sociais demoraram em entrar em Portugal precisamente por ameaçarem o fim dessa cegueira. Hoje continuam a ser ameaçadas pelas mesmas razões4.
Chegar ao desconhecido por via do conhecido é uma forma normal de ir ao encontro de outros nos desafios de Descobrimentos, mas os jogos de lusofonia (no sentido metafórico e não como se utiliza hoje em dia) implicam ao meu ver outras variantes de abordar os outros (outras culturas). Estas outras variantes funcionam com imposição e manipulação do “outro” para servir os interesses próprios, começando e acabando pela imposição da língua portuguesa.
Os “vários” de Agostinho da Silva definem bem o “eu”, no universo dosportugueses, mas pouco dizem da diversidade inclusiva de outras culturas. Os seus cadernos davam a conhecer personagens e eventos do mundo, mas pouco sabemos de outras culturas. Não encontrei nos cadernos nada sobre a cultura indiana, e em que nos falasse de vasudaiva kutumbakam , ou seja, todo o universo como uma família para cuidar, ou que ócio e negócio nada acrescentam à explicação de nishkama karma do Bhagvadgita, ou de tanha e dukha [sede e dor] do Budismo. Eu poderia continuar a multiplicar os exemplos para demonstrar a vacuidade do universalismo lusófono, que vejo bloqueado pelo seu nacionalismo que andou pelo mundo para descobrir a si próprio.
As fantasias, ou mais positivamente chamadas utopias, resultam das frustrações e manipulações falhadas, ou em confronto com as crises. O que me impressiona, nos discursos de 4º império ou 5º império, é o atrevimento de querer manipular o próprio Espírito Santo, personalizado em criança / menino, ou como o vento imprevisível, que sopra quando e como quer ( ubivultspirat ). Todos os três evangelhos sinópticos falam de blasfémia contra o Espírito Santo como um pecado imperdoável, e é isto o que me parece oportuno dizer quando os proponentes de lusofonia universalista vão convocar o Espírito Santo para legitimar as suas utopias laicas .
Lembro-me de um caso referente à conquista de Goa por Afonso de Albuquerque. Quando os portugueses chegaram a Índia souberam que os turcos e os rumes traficavam em cavalos de guerra e construíam barcos em Goa. Foi nessa altura que os portugueses descobriram também os canarins de Goa, como aliados úteis para a conquista de Goa. Timoja, um líder local foi aceite como colaborador, embora logo mais tarde se tornasse inconveniente e obstáculo para as pretensões hegemónicas dos portugueses. Mas no início o pragmatismo prevaleceu, e conta-nos João de Barros: “Afonso de Albuquerque, quando ouviu estas coisas a Timoja, não lhe pareceu que vinham da boca de um gentio, mas de núncio de Espírito Santo”5 .
Voltando ao meu tema principal, nomeadamente “Ir à Índia sem abandonar Portugal”, trata-se de uma das muitas metáforas que enchem o pensamento e os escritos de Agostinha da Silva. Não se trata de qualquer viagem física, mas sim de uma conceção de humanidade como vária e una. Mas quando Agostinho da Silva e muitos outros defensores da lusofonia procuram separar os seus ideais da realidade colonial e não só, leva-me a concluir que partilham da mesma espiritualidade cristã da igreja católica que Lutero designara por “casta prostituta”.
Lutero era também agostiniano por formação, mas neste caso formado na espiritualidade de S. Agostinho. Quem conhece bem esta espiritualidade e o paradoxo da arrogância fundada na fraqueza da natureza humana, poderá comparar S. Agostinho com Bush americano dos nossos tempos. Ambos descobriram o “eixo do mal”, S. Agostinho nos heréticos Donatistas e George W. Bush no Al Quaeda. Ambos chegaram à conclusão que o mal não tem direito de existir, e enquanto S. Agostinho chamou as tropas romanas para exterminar os Donatistas no Norte da África, Bush fez uso de mísseis balísticos com urânio enfraquecido para destruir o Iraque e o Afeganistão, sem esperar pelo consenso das nações. No século XVI Portugal tinha o seu Bush em D. Manuel, que via o seu Al Quaeda nos mouros por todo o lado. Estava convencido, graças à mesma espiritualidade messiânica de Joaquimitas, que ele era o escolhido da Providência divina para libertar a Terra Santa. Preocupa-me e até enoja-me ouvir desta nova missão joaquimita ou florista laica da lusofonia universalista.
Acho que em vez de vender lusofonia de flores e poesias, ou hinos laicos, seria muito mais honesto seguir a pedagogia de Fernão Mendes Pinto, de quem não li quase nada nas obras de Agostinho da Silva ou nas obras a ele dedicadas. Para mim, Fernão Mendes Pinto foi um modelo daqueles que foram à Índia sem abandonar Portugal. Ele soube conviver com piratas e santos, e aprendeu dos outros, povos vários do Oriente6. A consciência de diversidade precisa também vir de fora, e não somente de cogitações individuais para construir uma lusofonia das aranhas que pode servir para apanhar moscas.
Numa conferência na Câmara Municipal de Lagos, em 1997, tive a oportunidade de falar sobre “A literatura de Viagens e a Ambiguidade do Encontro de Culturas: O Caso da Índia”7 . Continuo convencido de que havia pouco encontro de culturas. Com exceção daqueles que optaram por viver com as mulheres locais, a grande maioria esbarrava-se nas culturas locais, e deixaram relatos dos aspetos que lhes pareciam estranhos, ameaçadores, detestáveis, etc., mas sempre alheios ao seu contexto cultural. O próprio Afonso de Albuquerque achou detestável a prática de Sati , mas a sua compaixão pelas viúvas queimadas não era coerente com as crueldades praticadas contra os escravos, nem os seus sucessores rejeitaram os crimes da Inquisição.
Apesar de muita conversa de globalização, sentimos cada vez mais a necessidade de resolver os conflitos de multiculturalidade. O diálogo de culturas não se faz impondo uma língua sobre os outros, chamando a isso política de inserção social ou outro nome qualquer. Encontro de culturas só será possível através de uma opção radical de simpatia, empatia e imersão. O budismo indiano já tinha passado para toda a Ásia durante séculos antes da chegada dos portugueses, e é um belo exemplo de encontro de culturas a ser emulado.
Para voltarmos ao discurso de Espírito Santo da lusofonia universalista, cá vai mais uma referência à História colonial portuguesa em Goa. Contava um jesuíta em Goa numa carta que escreveu aos seus colegas em Portugal em vésperas de um batismo geral em 1565: “os muitos neófitos com vestes europeias e rabichos cortados já parecem templos dignos de Espírito Santo”.
Os missionários italianos (não esqueçamos que o nacionalismo italiano é um fenómeno tardio na Europa) como De Nobili e Ricci foram pioneiros de adaptação cultural do cristianismo no Oriente. Se Portugal produziu um S. João de Brito que mudou a cor das roupas, não avançou muito mais do que isso na inserção cultural. Ficou entre os pandaraswamis , e nenhum jesuíta português é conhecido por ter entrado na categoria de bramanaswamis que tinham que dominar as línguas e culturas locais.
A minha crítica ao infantilismo da lusofonia não quer desacreditar as utopias da lusofonia universalista. Foram apelos de esperança em tempos de crises, começando por Camões, cujo épico Os Lusíadas é justamente designado por Eduardo Lourenço como simultaneamente sinfonia e Réquiem, heroicamente triste e tristemente heróico, enquanto os comportamentos mesquinhos da realidade da vida sempre desmentiram essas grandezas da gloriosa ficção8.
Para quem tenha capacidade de aguentar com equanimidade uma agressividade literária contra a lusofonia cultural na Índia eu remeto-os ao romance de Salman Rushdie, O último suspiro do mouro.9 , que os amantes de lusofonia tenderão a apelidar de uma nova versão de versos satânicos. Publicou o livro para antecipar as comemorações dos Descobrimentos portugueses e pinta um quadro de lusofonia na Índia como degradação mental, moral e genética, e qualifica a sociedade dos luso-descendentes como “muito afastada da normalidade”.
Mas se limitarmos ao lado linguístico da lusofonia na experiência colonial em Goa, tive oportunidade de participar no congresso que comemorou em Lisboa o 50º aniversário da Sociedade da Língua Portuguesa em 1999 sob a epígrafe «A Lusofonia a Haver”. Falei nesta ocasião sobre “A língua portuguesa em Goa: As dificuldades da sua implantação”. Depois de 450 anos de presença colonial e políticas de imposição da lusofonia sobre o pequeno enclave, indicava o censo de 1960, um ano antes do fim do colonialismo português em Goa, que menos de 3 por cento declaravam o português com a sua língua materna. Entre estes estavam incluídos quase 3.000 militares e oficiais de quadros administrativos e suas famílias metropolitanas10.
Só quem recusa conhecer a história do colonialismo português em Goa com os olhos dos naturais, e não como se deseja ver a partir de Portugal, poderá compreender a fraca implantação da língua portuguesa em Goa. Houve muitos que aprenderam a língua e alguns que a cultivaram por razões de pragmatismo e necessidade, mas poucos por lusofilia. O que os naturais não apreciavam, como seria de esperar, que tivessem que concorrer com os brancos e mestiços, que mesmo sendo pouco educados tinham a vantagem da língua colonial que nunca tiveram que aprender para mandar nos nativos.
A lusofonia continua a ser vista como um instrumento colonial de opressão e desrespeito pelas culturas locais. Talvez esta é a grande diferença na experiência pós-colonial portuguesa na Ásia e no contexto da CPLP e o acolhimento que a lusofonia continua a ter na África. Os casos de Timor e Macau na Ásia, levam a crer que ainda é cedo compreendermos bem o alcance estratégico da língua oficial e o seu futuro nesses territórios.
Para terminar, quero citar a recente obra do nosso reitor emérito Fernando Santos Neves, A hora da lusofonia , em que é falada a doença infantil de luso-europeismo apátrida, e de doença senil de anti-europeísmo patrioteiro11. Não sei se não ficou alguma outra doença por diagnosticar, uma doença de meia idade em que se invoca o deus-menino para não assumir responsabilidades de adultos maduros, ou grihasta na cultura indiana.
Em vez procurar ócio ou somente emprego que dessem prazer e alegria, se Agostinho da Silva tivesse ido à Índia abandonando Portugal, teria enriquecido a lusofonia universalista com o sentido de obrigação (sem esperar frutos, nishkama ) de servir a humanidade inteira como sua família. Aprenderia o que significa vasudaiva kuttumbakam e a sua importância para uma lusofonia universalista.
[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][rs_divider margin_top=”35px” margin_bottom=”35px” border_color=”#ffffff”][/vc_column][/vc_row][vc_row][vc_column][vc_column_text dp_text_size=”size-2″]2 Portugal, Indien und Deutschland / Portugal, India e Alemanha , ed. Helmut Siepmann, Actas do V Encontrol Luso-Alemão, Koln / Lisboa, 2000, pp. 23-32.
3 The Portuguese and the Pacific , eds Francis A. Dutra and João Camilo dos Santos, Santa Barbara: University of California, Centre of Portuguese Studies, pp. 272-286.
4 Boaventura de Sousa Santos, Pela Mão de Alice , Porto: Afrontamento, pp. 49-67.
5 João de Barros, Décadas da Ásia , ed. Liv. Sam Carlos, Lisboa: Vol. II, Liv. V, Capt. I, p. 429
6 Fernão Mendes Pinto and the Peregrinação, Vl. 1 – Studies, ed. Jorge Santos Alves, Lisboa: Fundação Oriente, 2010.
7 Cadernos Históricos – VIII, ed. Comissão Municipal dos Descobrimentos, Lagos, 1997, pp. 85-96.
8 Eduardo Lourenço, O labirinto da saudade, Lisboa: D. Quixote, 1993, p. 13.
9 Salman Rushdie, O último suspiro do mouro. Lisboa, D. Quixote, 1995.
10 Língua e Cultura, ed. Sociedade da Língua Portuguesa, Lisboa, 2000, pp. 64-78.
11 Fernando dos Santos Neves, A hora da lusofonia, Lisboa: Edições Universitárias Lusófonas, 2013, p. 154.[/vc_column_text][/vc_column][/vc_row]


