A emergência da inteligência artificial (IA) na educação suscita múltiplas interrogações sobre o papel, o potencial e os limites no seio das práticas pedagógicas contemporâneas. Mais do que uma tecnologia neutra ou de um simples recurso instrumental, a IA representa uma transformação paradigmática no modo como concebemos o ensino, a aprendizagem e a avaliação. Esta transformação exige, por parte da comunidade académica e educativa, uma reflexão crítica, ética e fundamentada sobre a integração em contextos formais e não formais de educação.
A capacidade da IA para personalizar a aprendizagem, através de sistemas adaptativos e tutores inteligentes, tem sido amplamente documentada (Holmes et al., 2022). Estes sistemas permitem ajustar os percursos de aprendizagem às necessidades e ritmos de cada estudante, identificando lacunas de conhecimento e propondo recursos específicos para colmatá-las (European Digital Education Hub, 2024). Contudo, esta personalização não é isenta de riscos. A automatização excessiva pode reduzir a complexidade dos processos educativos a interações tecnológicas simplificadas, desvalorizando o papel do professor enquanto mediador crítico e promotor do pensamento reflexivo.
A IA levanta, assim, questões profundas sobre o conceito de educação. Redefinir o papel do professor e do aluno no contexto digital exige uma abordagem pedagógica que vá para além da simples incorporação de ferramentas. É necessário repensar os ambientes de aprendizagem, fomentar a colaboração interpares e promover o pensamento crítico como eixo estruturante da educação para a era digital. Esta abordagem está alinhada com as orientações do “AI Future Learning” (U.S. Department of Education, 2023), que destacam a importância de uma integração consciente e centrada no humano.
É neste ponto que se torna crucial considerar o papel da IA numa perspetiva humanista. Como defende Dias de Figueiredo (2023), a IA deve ser integrada numa lógica de coautoria e não de substituição, potenciando a criatividade, a autonomia e a responsabilidade dos aprendentes. Esta abordagem implica o desenvolvimento de competências críticas e éticas por parte dos estudantes e dos docentes, como preconizado pelo “AI Competency Framework for Students” (UNESCO, 2024), que propõe uma educação orientada para a cidadania digital, a sustentabilidade e o pensamento computacional com sentido.
Por outro lado, a crescente capacidade das ferramentas de IA generativa, como os grandes modelos de linguagem, levanta desafios à integridade académica e ao papel da autoria. A facilidade com que os estudantes podem gerar textos, resolver problemas ou simular diálogos exige uma reconfiguração das práticas de avaliação e de feedback. Como argumenta Benedict du Boulay (2023), é necessário garantir que a utilização da IA não comprometa os princípios de equidade, justiça e transparência, evitando enviesamentos algorítmicos e promovendo uma literacia digital crítica.
Neste enquadramento, a formação docente assume um papel central. A maioria dos professores não recebeu formação específica para lidar com as dinâmicas introduzidas pela IA, sendo urgente criar programas estruturados de capacitação (UNESCO, 2024). O “AI Competency Framework for Teachers” delineia competências fundamentais nas dimensões da ética, pedagogia, fundamentos técnicos e desenvolvimento profissional, apelando a uma abordagem sistémica e colaborativa. Esta necessidade torna-se ainda mais evidente quando se observam práticas escolares que utilizam IA sem uma compreensão clara das implicações sociais, culturais e epistemológicas.
As instituições de formação inicial de professores têm, por isso, a responsabilidade de incorporar nos seus currículos momentos de experimentação pedagógica com IA, promovendo uma cultura de inovação crítica. Modelos como o TPACK (Technological Pedagogical Content Knowledge) podem ser enriquecidos com a dimensão ética e política da IA, como sugerem Langran, Searson & Trumble (2024), contribuindo para o desenvolvimento de um professor reflexivo e preparado para os desafios do século XXI.
Importa, ainda, sublinhar que a integração da IA deve ser acompanhada por políticas públicas que assegurem a equidade no acesso, a proteção de dados e a sustentabilidade ambiental. A Estratégia Digital Nacional (2024) em Portugal reconhece o papel estratégico da IA na educação, mas alerta para a necessidade de garantir que a implementação não acentue desigualdades nem comprometa os direitos fundamentais. Estas preocupações alinham-se com os princípios da UNESCO (2025), que apela a uma gestão global da IA centrada na dignidade humana, na justiça social e no bem comum.
A educação com IA deve ser pensada como um processo participativo, onde estudantes e professores tenham voz ativa na seleção, utilização e avaliação das ferramentas. Isto implica também uma gestão escolar que promova a transparência, a segurança digital e o uso consciente da tecnologia. O envolvimento da comunidade educativa, incluindo famílias e decisores políticos, é essencial para uma abordagem integrada e sustentável.
Neste cenário em constante mutação, a investigação em educação desempenha um papel crucial. É urgente apoiar estudos que avaliem os impactos reais da IA nas aprendizagens, nas práticas pedagógicas e nas relações educativas. Estes estudos devem adotar metodologias participativas e transdisciplinares, envolvendo todos os atores educativos e valorizando as vozes dos próprios estudantes. Além disto, importa promover redes de partilha de boas práticas e comunidades de aprendizagem entre docentes, investigadores e desenvolvedores de tecnologia, fomentando uma cultura colaborativa de desenvolvimento e avaliação da IA em educação.
Assim, a IA em educação não pode ser reduzida a uma promessa tecnológica. Deve ser pensada como um projeto pedagógico e cultural, orientado por valores e por uma visão transformadora da educação. Uma educação que não apenas utilize a IA, mas que eduque com e para a IA, formando cidadãos críticos, criativos e conscientes.
Referências Bibliograficas
Boulay, B. du (2023). Inteligência Artificial na Educação e Ética. RE@D – Revista de Educação a Distância e Elearning.
Dias de Figueiredo, A. (2023). ChatGPT: o Bom, o Mau e o Falso. University of Coimbra.
European Digital Education Hub. (2024). Teaching with AI – Assessment, Feedback and Personalisation.
Langran, E., Searson, M., & Trumble, J. (2024). Exploring New Horizons: Generative Artificial Intelligence and Teacher Education. AACE.
UNESCO. (2024). AI Competency Framework for Teachers. https://doi.org/10.54675/ZJTE2084
UNESCO. (2024). AI Competency Framework for Students. https://doi.org/10.54675/JKJB9835
UNESCO. (2025). Artificial Intelligence and the Evolution of AI (Model) Capabilities. https://doi.org/10.54678/DDEC6804
República Portuguesa. (2024). Estratégia Digital Nacional. Ministério da Economia e da Inovação Digital.
U.S. Department of Education. (2023). Artificial Intelligence and the Future of Teaching and Learning: Insights and Recommendations.



