Os surtos epidémicos acontecem quando o agente epidemiológico apresenta vantagem sobre a população de uma determinada região, que por norma não padece da mesma. As suas consequências igualam-se ás mais conhecidas guerras da história e até à existência de catástrofes naturais.
O século XIX, período histórico marcado pela mutação de ideais políticos, revoluções sociais e necessidades da inovação na forma de pensar e no conhecimento científico, é também assinalado pela existência de grandes surtos epidémicos, como cólera, tuberculose, febre-amarela entre outros.
É possível afirmar que o período anteriormente descrito se demonstra profícuo de análise no que toca a surtos epidémicos e medidas sanitárias, tornando-se passível de criar um paralelo entre as medidas tomadas na época e as que estão a ser aconselhadas em tempos da nova efeméride cientificamente designada por Covid-19.
Será aceitável numa primeira fase aprofundar o enquadramento histórico sobre o século XIX. De referir as mudanças económico-sociais associadas à época da Revolução Industrial que estiveram na base da proliferação de novas doenças e problemas de saúde (Castanho, 2018, p.9). Além do desenvolvimento económico associado à Revolução sucederam-se, com a necessidade do aumento de mão-de-obra, a sobrelotação populacional das zonas industriais e condições de trabalho atrozes que se constituíram como fatores favoráveis ao surgimento de pobreza e consequentemente más condições de higiene.
Também o progresso associado aos transportes marítimos (consequência da Revolução Industrial) e a sua expansão, foram favoráveis a que as chamadas doenças exóticas saíssem dos seus nichos e atingissem outras zonas do mundo (Esteves, 2017, p.186).
A cólera foi a epidemia que mais afetou a Europa do século XIX, pelo número de óbitos causados e pela área que atingiu, não fazendo distinção entre os países mais carenciados e os países desenvolvidos da época, como a França e Inglaterra. Apesar de atingir grande parte da Europa, o povo português foi o primeiro a ter contacto a cholera-morbus ou cólera-asiática aquando da sua estadia na Índia existindo relatos referentes ao século XVI.
A dimensão que esta e outras epidemias atingiram em todo o globo fizeram com que os problemas sanitários deixassem de ser apenas uma questão médica para passarem a abranger também medidas políticas e sociais. Entre as medidas tomadas, estariam numa fase inicial o fecho de fronteiras e segundo afirma Laurinda Abreu, cidades de países como Itália e Croácia, foram as pioneiras a usar a mesma de forma imediata, após o conhecimento de peste nas zonas vizinhas (Abreu,2018, p.93). Além disto, existia também um controlo ainda que feito com algumas dificuldades por parte das autoridades sanitárias na fronteira para analisar pessoas e mercadorias que entravam em cada um dos países.
Após a afirmação anteriormente reiterada, permitam-me que enfatize a parte que se refere ás cidades de Itália como pioneiras, em séculos anteriores, a tomar medidas de fecho e controlo de fronteiras, em caso de surto epidémico. Se em tempos a região estava no pódio face a medidas de prevenção face á propagação da epidemia da cólera, no momento presente, lamentavelmente, é o país com maior número de casos de Covid-19 na Europa.
Noutros períodos históricos- sobretudo nos séculos XVII e XVIII- o encerramento e proteção das fronteiras do inimigo (a doença e o seu portador) seria a primeira norma a ser tomada, para manter a integridade territorial dos estados, hoje em dia a medida não foi tomada por Itália e quase todos os outros países europeus de forma imediata devido, entre outras justificações, á pertença a um espaço (União Europeia) onde a circulação de pessoas e mercadorias é feita de forma livre desde a formalização do Acordo de Schengen (1997) e esta incentiva o desenvolvimento económico-financeiro do espaço.
Retomando ao século XIX, devido aos custos e dificuldades de implementação de medidas para a população geral dos países que se expõem através do controlo de fronteiras, com a ajuda da formação de cordões sanitários ou até da criação de lazaretos e espaços de desinfeção, nota-se com o passar do século que surgem outras medidas de atuação, mas de forma individual, como forma de complemento ás medidas coletivas (Esteves, 2017, p.215).
Os governos assumiram a relevância de manter a sua população saudável existindo assim um maior interesse por parte dos profissionais de saúde pela saúde pública. Desta forma, reorganizam-se os serviços sanitários de maneira a impulsionar normas de higienização e sobretudo a mudar as mentalidades, essencialmente da população mais carenciada, pois como referido anteriormente foi fácil associar o avanço da cólera com a pobreza e ausência de higiene.
Hoje em dia, com o avanço das mentalidades e da forma de comportamento das sociedades, a ausência de higiene e de condições sanitárias existem num número muito reduzido da população e acaba por não se constituir como um meio de propagação como era visto no século XIX. No entanto, são de destacar, as medidas de higiene aconselhadas de forma constante por instituições ligadas à saúde pública e pelos meios de comunicação, como por exemplo a lavagem constante das mãos, o distanciamento entre pessoas e o eventual uso de máscara e luvas.
Como forma de conclusão, pode-se afirmar que apesar dos avanços da história, mas sobretudo os avanços científicos e económico-sociais, comparando o século XIX e o século XXI, no que toca a medidas tomadas face á ocorrência de surtos epidémicos, é possível estabelecer um paralelo/continuidade entre os séculos. Apesar disto, pode-se concluir que apesar da sua semelhança as normas seriam seguidas por uma ordem diferente.
Para séculos anteriores- inclusive o século XIX, as medidas coletivas eram tomadas numa fase inicial para evitar que as doenças epidémicas “entrassem” nas regiões e só uma vez infetadas se encaravam as medidas individuas relativas á higienização, isolamento/ quarentena da população. Relativamente à atualidade as normas de quarentena individual foram pedidas por Governos e Autoridades de Saúde Pública em primeiro lugar e numa fase posterior foi avaliado e imposto o corte e regulação das fronteiras, em grande parte dos países Europeus. As diferenças permitem destacar as distinções no enquadramento histórico dos diferentes períodos analisados, nomeadamente o desenvolvimento da economia que liga países de todo mundo e ainda o fenómeno da globalização.
Acrescentando ainda que o presente artigo serviu para se entender que existem acontecimentos históricos que se repetem e irão repetir-se futuramente, deixando passível a aprendizagem e possibilidade de não se reiterarem erros que em tempos aconteceram. Sendo o tema em questão de sensibilidade elevada e na esperança que os acontecimentos históricos transmitam valores e conhecimento elevado para que erros do passado sejam evitados- é tempo de evitar que o se propague, forma individual assumindo a responsabilidade individual de um agente de saúde pública.
Acredito que em pleno século XXI, nos encontramos em vantagem, face ás epidemias do século XIX, devido aos avanços médicos e científicos e apesar de demorada, esta será uma fase que chegará à sua acalmia e por fim ao seu termino. Desejando as menores consequências possíveis, com a certeza que se irá determinar um novo início para a sociedade, política e economia de cada um dos países da Europa.
Referências
Abreu. L (2018). A luta contra as invasões epidémicas em Portugal: políticas e agentes, séculos XVI-XIX. Ler História, nº78, pp.92-120.
Castanho. V.A. (2018). Surtos epidémicos: a evolução da comunicação ao longo dos tempos. Lisboa: Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias. Dissertação de Mestrado.
Esteves. A. (2017). A cólera no norte de Portugal de oitocentos: medos, providências e protagonistas. In Hernandéz. B; Gonzaléz. L. (ed). Antiguos e nuevos desafios.Santiago de Compostela: Alvarellos Editor. pp. 185-220.