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Um pouco da complexidade africana a partir de seus artistas

Um pouco da complexidade africana a partir de seus artistas

Resenha de livro: Diawara, Manthia. Em busca da África: pretitude e modernidade. Tradução: Denise Bottmann. Rio de Janeiro: Zahar, 2022, 413p.

Manthia Diawara (1953-) é um pesquisador malinês, crítico de arte, cineasta, e professor de estudos africanos e literatura comparada. Ele passou a infância e a juventude entre a Guiné, o Mali e a Libéria, na África Ocidental, e posteriormente se radicou nos EUA, onde leciona na New York University (NYU). É autor dos livros African Cinema: Politics and Culture (1992) e We Won’t Budge: An Exile in the World (2003), e organizador do livro Black American Cinema (1993), entre outros. Em busca da África, publicado originalmente em 1998, provavelmente é o único livro de M. Diawara lançado no Brasil. No ano anterior à publicação original, em 1997, o autor lançou um filme documentário, com o mesmo título do livro, em que mostra algumas cenas deste seu reencontro com a Guiné após aproximadamente trinta anos.

A obra contém oito capítulos com relatos de M. Diawara a respeito do seu reencontro com contextos africanos. Entre os capítulos, ele apresenta quatro relatos de situações em que coloca os contextos afro-americanos em diálogo com os contextos africanos. Além disso, o livro apresenta aproximadamente dezoito fotografias (pp. 27, 70, 97, 166-172, 176, 278, 329-330, 333-335, 354-355), seções com notas e referências (pp. 399-407), e um novo prefácio escrito pelo autor (pp. 9-22).

Sumário
Prefácio a esta edição (pp. 9-22)
Prefácio à edição original (pp. 23-25)
Situação I: Sartre e o modernismo africano (pp. 29-45)
1. Em casa (pp. 46-79)
2. Williams Sassine sobre o afropessimismo (pp. 80-104)
Situação II: Richard Wright e a África moderna (pp. 105-132)
3. O Sékou Touré de Cémoko (pp. 133-143)
4. Narrativas de retorno (pp. 144-183)
Situação III: Malcolm X: Conversionistas X culturalistas (pp. 184-205)
5. A forma do futuro (pp. 206-243)
6. O encontro com Sidimé Laye (pp. 244-258)
7. A arte da resistência da África (pp. 259-306)
8. Sidimé Laye um ano depois (pp. 307-336)
Situação IV: Mano cosmopolita (pp. 337-397)
Notas e referências (pp. 399-407)

M. Diawara abre o livro narrando a experiência de abordar em suas aulas o pan-africanismo “como uma história de ideias muitas vezes contraditórias” (31). Logo no início ele já indica algo que está presente em todo o livro: a busca pelas narrativas históricas que não são simplistas, mas levam em consideração as relações complexas, as contradições e as ambivalências presentes nos contextos africanos.

O interesse de M. Diawara volta-se para a trajetória controversa de Ahmed Sékou Touré (1922-1984), o ex-presidente da Guiné. Na infância ele considerou Touré seu herói por conta da euforia com a independência do país e o projeto de alfabetização em massa. Assim como outros líderes africanos, Touré representaria o anseio pela modernização; mas, por outro lado, foi um ditador que prendeu e matou opositores, que não soube lidar com a “tradição”, e que acirrou as divisões entre as diferentes populações da Guiné. Os pais de M. Diawara, nascidos no Mali, foram impedidos de atuar como comerciantes sob o regime de Touré e obrigados a abandonar a Guiné, no início de 1964.

A compreensão de M. Diawara sobre a trajetória de Ahmed Sékou Touré e os fracassos da revolução da Guiné, assim como a compreensão de outros contextos africanos, vai sendo reconstruída e explicitada ao longo do livro em diálogo com personagens como o escritor guineense Williams Sassine (1944-1997), o taxista Cémoko, e seu amigo de infância Sidimé Laye que, por sua vez, tornou-se um entalhador.

Williams Sassine foi um romancista que exilou-se durante o regime de Touré e utilizou suas obras ficcionais para expor os problemas enfrentados pelos guineenses. Nos diálogos com M. Diawara, Sassine criticou as tentativas de transformar Touré e outros líderes africanos em heróis:

“Foi Sékou Touré que pôs palavras de ordem como ‘Trabalho’, ‘Justiça’, ‘Igualdade’ e ‘Solidariedade’ em circulação entre nós. Infelizmente, essas palavras logo foram mal empregadas e perderam o significado. […] As revoluções africanas também foram tristes porque logo percebemos que por trás de todo senhor negro havia um líder branco presente por toda parte.” (Williams Sassine: 90)
“Sékou Touré matava gente demais para cada coisinha que fazia. Vivia entre dois extremos, amor e ódio. Nunca foi comedido; era ardoroso de um lado e gélido do outro. O lado gélido produziu o infame Camp Boiro.” (Williams Sassine: 92)

O taxista Cémoko representaria o guineense que admira Touré de forma irrestrita. Nas palavras de M. Diawara:

“Notava-se que Cémoko, um mandinga, era o oposto de Williams Sassine: apoiava sem reservas tudo o que Sékou Touré havia feito, a ponto de culpar as vítimas da repressão do regime por suas mazelas. Ele disse que sossos e fulas eram inimigos ferrenhos antes mesmo que Touré subisse ao poder.” (137-138)

Sidimé Laye sofreu com o regime de Touré por conta das ligações familiares com as práticas “tradicionais” da população baga da Guiné:

[…] “Infelizmente, havia alguns soldados no avião que estavam tentando fugir de Sékou Touré. Foram presos antes que o avião decolasse, e durante a revista encontraram a máscara que estava associada ao meu tio [entalhador]. Depois da independência, era proibido realizar rituais tradicionais com máscaras e mandar ídolos para fora do país. Assim, meu tio foi preso com os soldados rebeldes e acusado de tentar derrubar Touré e o governo revolucionário. Depois disso, minha família passou a ser vigiada pela polícia secreta.” (Sidimé Laye: 257-258)

Esses diálogos mostram que, diante da complexidade dos contextos africanos, as pessoas podem adotar perspectivas distintas e contraditórias de acordo com suas vivências e seus pertencimentos. Por exemplo, M. Diawara mencionou uma canção de Salif Keïta, chamada Mandjou, que foi composta em homenagem a Touré. É muito interessante o paralelo feito por M. Diawara entre o artista malinês e os griôs: Salif Keïta seria um “griô moderno” (156) que exalta e louva os feitos de Touré como se este tivesse sido um verdadeiro soberano mandê, assim como o grande Sundiata Keïta (c.1190-1255). M. Diawara mostra algum incômodo com o papel dos griôs e com o resgate da memória e da “tradição” mandê, mas também admite que se emocionou com a canção de Salif Keïta e com o sentimento de pertencimento a este universo mandê.

Para M. Diawara, Salif Keïta desafia diversos preceitos da sua linhagem, sua arte aparentemente propõe a subversão de algumas coisas, mas fundamentalmente reafirma os papéis estabelecidos dentro da “tradição” mandê (158-159). No entanto, os entalhadores africanos como Sidimé Laye seriam artistas que vão além:

[…] “entalhadores, como Sidimé Laye, permitiram que suas mãos fossem possuídas não só pela tradição, mas também pelo amor ao artifício. Assim, pode-se dizer que eles subverteram a ideia de uma África imutável e o monopólio ocidental dos princípios universais da modernidade. […] Por fim, descobrimos artistas como Laye e suas assinaturas.” (290)

O que dizer ao fim da leitura? Manthia Diawara nos presenteou com um belo trabalho que dialoga com obras de grandes artistas e intelectuais africanos como: Ousmane Sembène (1923-2007), Chinua Achebe (1930-2013), Djibril Tamsir Niane (1932-2021), Cheikh Hamidou Kane (1928-), Souleymane Cissé (1940-), Tierno Monénembo (1947-), e Chéri Samba (1956-), entre outros. O grande mérito de M. Diawara é que ele não deixa de apontar os erros de líderes africanos como Ahmed Sékou Touré e, ao mesmo tempo, não se permite adotar uma perspectiva afro-pessimista. O livro consegue abordar importantes aspectos da história recente da África Ocidental, principalmente da Guiné, através da arte e dos artistas africanos.

*Imagem da capa do livro elaborada por Odilon Moraes a partir da pintura de
autoria de Arjan Martins, sem título, 2020, acrílica sobre linho, 160 x 120
cm, cortesia Galeria de Artes A Gentil Carioca. Reprodução autorizada pela
editora Zahar (Rio de Janeiro, Brasil).*

Referências
Achebe, C. O mundo se despedaça. Coleção Autores Africanos. São Paulo: Ática, 1983 [1958].
Correa, S. “Ousmane Sembène e a África traduzida em palavras e imagens.” in Carvalho Filho, S.; Nascimento, W. (orgs.). Intelectuais das Áfricas. 2.ed. Campinas: Pontes, 2019, pp. 169-202.
Diawara, M. African Cinema: Politics and Culture. Bloomington: IUP, 1992.
Diawara, M. (org.). Black American Cinema. New York: Routledge, 1993.
Diawara, M. In Search of Africa. Cambridge: HUP, 1998. [Edição brasileira: Zahar, 2022.]
Diawara, M. We Won’t Budge: An Exile in the World. New York: Basic Civitas, 2003.
Diawara, M.; Levinthal, D. Blackface. Santa Fe: Arena, 1999.
Fiorotti, S. “Questionando o afro-pessimismo de Martin Meredith.” A Pátria, Funchal, 10 nov. 2020.
Fiorotti, S. “A sofisticação da arte africana não é mero acidente.” A Pátria, Funchal, 13 mar. 2021.
Fiorotti, S. “Apelo para desconstruir etnias africanas e descolonizar a antropologia.” Journal of African and Afro-Brazilian Studies, 1(1): 7p., 2022.
In Search of Africa. Filme documentário. Direção: Manthia Diawara (26 min, Guiné / EUA, 1997).
Niane, D.T. Sundjata, ou A epopéia mandinga. Coleção Autores Africanos. São Paulo: Ática, 1982 [1960].

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