Em seu “Relato Autobiográfico”, o cineasta Akira Kurosawa (1910-1998) descreve uma situação absurda, que demonstra quão atroz era a censura em seu país natal, o Japão. Durante as suas atividades fílmicas em plena II Guerra Mundial, ele apresentou um roteiro antigo para análise, mas este foi inicialmente reprovado por causa da devassidão supostamente embutida numa frase: “o portão da fábrica abriu-se para os estudantes trabalhadores”. O então jovem cineasta quis saber em que sentido esta frase seria imoral. “Segundo argumentou este censor transtornado, ‘portão’ sugeria vividamente a palavra… ‘vagina’!.
Ainda sobre os perpetradores da censura, Akira Kurosawa acrescenta: “esses maníacos sexuais sentiam desejo carnal por qualquer coisa. Porque eram obscenos, tudo o que passava por seus olhos tornava-se, conseqüentemente, obsceno. Não vejo nada além de um caso de patologia sexual”. Malgrado detalhar uma situação bastante específica, esta descrição chama a atenção para o poderio destrutivo da censura, que, por causa de uma frase, poderia interditar toda uma obra magistral. E pior: o afã proibidor advém de desejos incontidos e mal-resolvidos de quem proíbe. É mais ou menos como funciona o fenômeno contemporâneo do cancelamentismo, em que patrulhadores ideológicos que se pretendem ilibados escarafuncham aspectos descontextualizados de conteúdos prévios, a fim de solapar os méritos artísticos e discursivos dos envolvidos.
O exemplo nipônico supracitado não foi escolhido por acaso: por ter sido um país derrotado na guerra em pauta, o Japão vingou-se de seu derrotismo tático na vida cotidiana dos cidadãos. E, ainda pior, das cidadãs. As mulheres eram extremamente vigiadas e julgadas por suas atitudes, sendo uma das mais severas o envolvimento com ocidentais, o que ocorreu muito no imediato pós-guerra: sem emprego e em situação de miséria, muitas japonesas foram obrigadas a prostituir-se para os soldados norte-americanos. E foram inclementemente punidas por causa disso!
O filme “Cartas de Amor” (1953, de Kinuyo Tanaka) aborda diretamente esta situação, mas, antes de investigarmos o seu enredo, convém ressaltarmos algo sobremaneira inovador em sua conformação produtiva: foi um dos primeiros filmes japoneses a ser dirigido por uma mulher. Consolidada como protagonista de vários filmes do prestigiado Kenji Mizoguchi (1898-1956), cuja filmografia destacava-se justamente por defender mulheres injustiçadas pelo conservadorismo milenar japonês, Kinuyo Tanaka (1910-1977) estreou como diretora após ter voltado de uma viagem aos EUA, onde esteve como embaixadora da cultura nipônica. Foi bastante criticada por seus compatriotas após o seu retorno, sendo acusada de imitar hábitos estrangeiros e, por motivos óbvios, tudo isso está contido nas entrelinhas melodramáticas de seu ótimo filme.
Baseado num romance de Fumio Niwa (1904-2005), “Cartas de Amor” apresenta-nos a dois irmãos que vivem juntos, Hiroshi e Reikichi Mayumi. O primeiro deles, mais jovem, é interpretado por Juzô Dosan, e aparece em cena saindo apressado de um táxi. Sabemos que ele é mulherengo pelo modo como uma moça despede-se dele no táxi, mas esta é desprezada pelo motorista, que acelera bruscamente, impedindo-a de comunicar-se chistosamente com seu amante. Ao entrar em casa, Hiroshi depara-se com seu irmão Reikichi (Masayuki Mori) estendendo roupas no interior de seu pequeno apartamento, alegando que “é assim que eles costumam fazer em Paris”. Desempregado, apesar de suas habilidades intelectuais e de ter servido como marinheiro na II Guerra Mundial – encerrada há cinco anos, naquele momento – Reikichi sai de casa, às tardes, para vasculhar os freqüentadores de uma estação de trem, em busca de um amor do passado, cuja carta relê diariamente, antes de dormir…
Na carta, uma mulher anuncia que casar-se-á no dia seguinte à sua escritura e que sente-se bastante triste e amarga por conta disso. Seu nome é Michiko (Yoshiko Kuga), e sabe-se pouco a respeito de seu destino, depois que ela enviuvou, durante a guerra. Num de seus passeios em busca dela, Reikichi encontra um amigo de juventude, Yamaji (Jukichi Uno), que oferece-lhe um emprego “inusual”: ajudar mulheres a enviarem cartas amorosas aos amantes norte-americanos e franceses que voltaram aos seus países depois que a guerra acabou. Como elas são consideradas meretrizes pela sociedade, não conseguem trabalhos decentes, sendo conduzidas inevitavelmente à prostituição e ao desprezo generalizado. Até que, certa tarde, Michiko aparece neste local, requerendo também o envio de uma carta a um amante estrangeiro…
Deste momento em diante, o filme enfatiza de maneira ferrenha as chagas e preconceitos da sociedade japonesa, visto que o apaixonado Reikichi, que esperou Michiko por tanto tempo, julga-a culpada de seu próprio sofrimento, considerando-a indigna de receber o perdão e a possibilidade de um recomeço marital. E, por mais que seja um melodrama de época, muito do que ocorre no enredo é ainda repetido nos dias atuais: as mulheres continuam vítimas de um escrutínio generalizado, enquanto os homens têm suas falhas de caráter ignoradas em seus progressos profissionais e no reconhecimento público de seus méritos. No filme, por exemplo, além de mulherengo, Hiroshi é também visto como um aproveitador, pois compra revistas estrangeiras usadas e as revende pelo dobro do preço em sua banca particular. Entretanto, ele é a figura mais positiva do enredo, enquanto Michiko, cujo rol de tragédias pessoais é desvendado num brilhante ‘flashback’, permanece desacreditada quando é reconhecida por algumas prostitutas de rua. A culpa é da diretora?
Em mais de um sentido, “Cartas de Amor” exibe as convenções que são impostas sobre os esforços ativos de minorias sociais que alcançam posições empoderadas na indústria cinematográfica: por muito tempo, os filmes protagonizados por marginais, ainda que convertidos em protagonistas, precisavam encerrar de maneira trágica ou moralista, a fim de que o ‘status quo’ se mantivesse enquanto lógica produtiva. Numa sociedade tradicionalmente machista como o Japão, o que poderia fazer Kinuyo Tanaka para tornar orgânico o seu feminismo primevo? A audiência a este clássico ainda subestimado responde na prática a esta pergunta.
Outrossim, a melhor maneira de valorizar os esforços pioneiros desta ótima diretora e excelente e prolífica atriz é trazer para o debate público as virtudes de seus talentos artísticos. Vale acrescentar que, tramaticamente, o próprio filme serve-se de um conhecido versículo bíblico [“quem dentre vós não tiver pecado, atire a primeira pedra!” (João, 8:7)] para manifestar-se contrário ao que, hoje em dia, disseminou-se como “cultura do cancelamento”. De nossa parte, o perdão é mais que possível, é devido!