Ser artista nunca foi fácil…
Todos os seres humanos, independentemente da sua ocupação profissional, precisam de se sustentar. Alguns – poucos – conseguem conciliar aquilo que são com aquilo que fazem, mas a grande maioria não; a grande maioria vive num limbo existencial entre aquilo que faz e aquilo que é. Destes, a maior parte chega a um consenso consigo próprio, a um equilíbrio – por vezes, periclitante – através de um regime de concessões e compensações que lhe permitem atravessar o horizonte da vida com relativa satisfação; mas há uma minoria que não consegue… São, estes, os artistas.
Não vou esmiuçar as artes de cada um, nem adentrar nas idiossincrasias de cada expressão artística que fazem com que – consoante as tendências que a sociedade dita – a dada altura se torne mais fácil para umas do que para outras; nem, muito menos, falar nas formas menos lícitas e menos meritocráticas com que algumas pessoas conseguem ascender pelas artes ou dos feitios de cada um – artista, entenda-se – que os tornam mais «apetecíveis». E não o farei, porque todos nós – os artistas – vivemos inicialmente no umbral; na penumbra; querendo ser vistos, notados, ter uma oportunidade…
Alguns de nós somos radicais; outros não tanto. Há aqueles que abandonam tudo em nome da sua arte e há outros que – por muito que amem essa arte – não o fazem. Mas isto não significa que uns amem mais a sua arte do que os outros, isto significa – tão-somente – que são pessoas diferentes, com feitios diferentes, com prioridades diversas, com níveis de resiliência diferenciados, com valores distintos; são outras pessoas… A relação do artista com a arte é uma relação de amor; e numa relação amorosa – de sucesso, entenda-se – as pessoas podem ter diferentes formas de amar, mas ninguém as quantificará. Por isso, um artista, ou – parafraseando Herman José – um verdadeiro artista, não se mede pelo nível de abnegação com que se entrega à arte em detrimento de tudo o resto. Tudo isso é – somente – a forma, a visão de cada um sobre mundo, a ditar a melhor maneira de ser-se o artista que se sente ser…
Vem isto a propósito da recente descoberta, com sucesso retumbante, da Tones and I. Consta que actuava na rua; e que, um dia, um agente passou por lá, viu a sua actuação e entregou-lhe um cartão…
As razões porque ela actuava na rua, desconheço. Suponho – e isto sou eu – que talvez fosse um daqueles casos de entrega total à arte; incapaz de fazer qualquer outra coisa que não aquilo que tão bem faz… É que um artista pode ser capaz de fazer muitas coisas, mas nada fará melhor do que a sua arte; na sua arte será exímio, mas nas restantes coisas será mediano. Porquê?
Porque não se envolve com mais nada, porque mais nada faz sentido; sente que nada mais merece o esforço… Compreendem?
Se não compreendem é porque fazem parte daqueles que conseguiram o compromisso consigo próprios, o tal consenso em regime de concessões e compensações de que falei acima. E não há nada de errado com isso; mas significa que não são artistas…
Os artistas, mesmo que consigam algo parecido com aquilo, vivem sempre em frustração, num sentimento de dívida e incumprimento para com o mundo; numa constante luta pela justiça que seria poderem viver em pleno a sua arte. E isso é como se vivessem sempre no meio de uma tempestade em alto mar; umas vezes no alto das vagas imensas, vendo o horizonte quase limpo, outras vezes, entre ondas, gigantescas e negras, nada vendo adiante. Não é um modo de vida fácil, este; em que não se é uma coisa nem outra… Tal como não deve ser, um, em que tenhamos de passar privações em nome da nossa arte; ou passar por dificuldades… Mas não vamos comparar; não o faremos porque, como já tive oportunidade de assinalar, cada um escolhe o caminho que melhor expressa o artista que se é…
Mas como dizia, Tones and I actuava na rua e eu, de facto, não sei se era um caso de abnegação… Mas o que sinto quando a ouço é um queixume de como foi difícil chegar aqui, de como foi injusta a vida até ao momento, de como não compreendia porque tantos – alguns com menos talento – singravam, enquanto ela até se via com tantas dificuldades…
Há uma ideia – errada, da minha perspectiva – que todo o sucesso, para ser merecido, tem de advir de um período de sofrimento; como se todos tivéssemos de atravessar o deserto para chegar ao paraíso. No entanto, há muitos casos de pessoas para quem o sucesso sempre foi natural. Quem?
Não sei, porque, como isso não vende, os media não entrevistam essas pessoas. O ser humano adora um bom drama; gosta de ver o sofrimento, o sangue, antes de aceitar que a vitória foi merecida… E isto não são só os outros; nós, relativamente a nós próprios, também. Quantos de nós nos sentimos relutantes em aceitar um cumprimento positivo por algo que não nos custou a fazer?
Quase todos.
E o artista é igual… O artista não se sente artista até ao momento em que não tenha sentido dificuldade em criar a obra; mas depois quer reconhecimento e o reconhecimento – regra geral – tarda e isso custa imenso.
A sociedade só reconhece o nosso direito ao sucesso, apesar do nosso talento, na directa proporção do sofrimento tido; é como uma moeda de troca. E tanto assim é que – volta não volta – algumas figuras conhecidas, de repente, «assumem» – entre aspas, porque tenho o direito a ter dúvidas – que foram maltratadas, ou abusadas, em crianças…
Mas será mesmo assim – esta ideia do sofrimento; ou será tudo isto uma manipulação qualquer das nossas mentes?
Tones and I, de acordo com este paradigma, tem tudo para ser um sucesso brutal; sofreu, tem talento e, por isso, o reconhecimento chegou finalmente.
No entanto, até há uns tempos atrás, ela já sofria, já tinha talento e talvez alguns já lhe reconhecessem esse talento; mas não era ninguém: cantava na rua…
Na verdade – pergunto – o que é que realmente mudou para a Tones and I para que ela atingisse o sucesso?
Pensando sobre esta coisa de se ser artista, deste compromisso que se assume com o mundo de criar arte para maravilhar os outros – artistas ou não – e de como tudo isto é incompreendido pela nossa sociedade, concluo que a mesma – excessivamente proletarizada – só valoriza quem produz matéria que, por sua vez, sirva para algo físico ou prático; tudo o resto, mesmo que se fale da produção de um valor que nem todos possam criar – como é o caso das artes – é desvalorizado e os seus autores vistos como parasitas. E o sofrimento, aqui, pode até ser entendido, numa perspectiva maniqueísta, como uma espécie de purificação do parasita, uma glorificação do mesmo à imagem de Jesus Cristo – porque tudo no nosso mundo, ainda, é excessivamente influenciada pelo cristianismo – que lhe permitirá atravessar os portões do paraíso e ser reconhecido. Para agravar tudo isto, toda esta dinâmica complexa de complexos de inferioridade e superioridade da sociedade face ao artista, criou-se – por ambiguidade – também a ideia de que todos podem ser artistas; e, com isso, a desvalorização do artista de facto cresceu desmesuradamente.
Casos como o da Tones and I – antes de ser conhecida, quero dizer – devem haver muitos, porque o mundo das artes encheu-se da mediocridade dos verdadeiros parasitas que acharam, iludidos, que ser artista era uma forma fácil de ganhar a vida; e os verdadeiros artistas, por causa disso, passaram a ter de desbravar densas florestas de árvores podres e a subir a montanhas cheias de cascalho solto só para terem uma oportunidade.
Tones and I fez esse caminho e foi notada. Entretanto, enquanto isso não acontecia, outros – provavelmente, alguns, menos talentosos – foram conseguindo o seu lugar ao sol; e talvez agora – neste preciso momento – haja alguém mais talentoso do que ela a lutar para conseguir uma oportunidade… E quantos, como ela, terão feito já esse caminho, mas ninguém os vê?
Ser artista nunca foi fácil; sempre foi difícil. E, faça-se o caminho que se fizer, seja-se o artista que se for, neste mundo, ter uma oportunidade continua a ser uma questão de sorte. E foi isso que aconteceu à Tones and I: sorte.
Fiquei muito feliz por ela – e olhem que não fico assim, por toda a gente; mas – aos outros – isto parece sempre ser injusto, porque é muito provável que aquilo que ela fez seja o que muitos fazem…
Desejo o maior sucesso à Tones and I e, enquanto isso, espero – vou continuando a esperar – que o mundo comece a olhar para os artistas – para os verdadeiros artistas – como eles merecem…
Imagem de SplitShire por Pixabay