As Regiões Ultraperiféricas (RUP) da União Europeia — como Açores, Madeira, Guiana Francesa e Ilhas Canárias — enfrentam, há décadas, desafios estruturais no acesso a cuidados de saúde. A sua localização remota, dispersão geográfica e baixa densidade populacional criam barreiras logísticas e dificultam a fixação de profissionais qualificados, limitando a oferta de cuidados especializados e tornando a equidade sanitária um objetivo constantemente adiado (OECD, 2022). Em paralelo, o impacto crescente das alterações climáticas e a dependência de evacuações médicas onerosas acentuam a vulnerabilidade destas regiões. No entanto, as mesmas condições que as tornam frágeis representam também oportunidades para inovar.
Nos últimos anos, tecnologias emergentes — como drones médicos, telediagnóstico e inteligência artificial (IA) — começaram a transformar a forma como os cuidados de saúde chegam às populações insulares e periféricas. Em vez de depender exclusivamente de deslocações físicas demoradas, a saúde digital permite aproximar especialistas de comunidades isoladas, reduzir tempos de resposta e melhorar a sustentabilidade dos sistemas locais. Estas transformações não ocorrem de forma espontânea: exigem políticas públicas consistentes, investimento em infraestrutura digital e capacitação técnica local para garantir que a inovação tecnológica se traduz em equidade em saúde.
Os desafios estruturais das RUP estão bem documentados. Em média, a densidade de médicos por 100 mil habitantes é cerca de 30% inferior à média continental europeia, o que se reflete em maiores tempos de espera e dependência de transferências entre ilhas (Pereira, Gouveia & Santos, 2023). Hospitais regionais enfrentam dificuldade em manter equipas multidisciplinares completas, e a rotação de profissionais é frequente. Este cenário dificulta a resposta rápida a emergências e compromete a continuidade de cuidados em áreas como oncologia, cardiologia ou cuidados intensivos. Paradoxalmente, esta limitação estrutural é também uma janela de oportunidade: territórios com menor inércia institucional podem adotar mais rapidamente soluções tecnológicas disruptivas (Almeida & Nunes, 2024).
Uma das inovações mais transformadoras é a logística médica com drones. Estes dispositivos aéreos permitem transportar medicamentos, sangue, vacinas e amostras biológicas de forma rápida e com menor custo ambiental. Nas Ilhas Canárias, o projeto HealthDrone conseguiu reduzir em mais de 60% o tempo médio de transporte de sangue entre ilhas (Rodríguez, González & Méndez, 2024). Em Madagáscar, a empresa Zipline tornou-se referência mundial ao entregar medicamentos essenciais para o combate à malária em vilas isoladas em poucos minutos, demonstrando que a tecnologia aérea pode salvar vidas em contextos desafiadores (Zipline, 2024).
Em Portugal, a Região Autónoma da Madeira lançou, em 2023, o programa DroneCare RAM, que realizou voos experimentais entre o Funchal e Porto Moniz, encurtando em 45 minutos o tempo de transporte de medicamentos urgentes (SESARAM, 2024). Estes drones complementam os meios de transporte tradicionais, como ambulâncias e helicópteros, e reduzem a dependência de operações de evacuação complexas. Além da eficiência logística, há benefícios ambientais claros, com a diminuição da pegada de carbono associada a deslocações aéreas convencionais.
Outra frente crucial de transformação é o telediagnóstico com suporte de inteligência artificial. Plataformas digitais permitem realizar triagens automatizadas, interpretar exames e conectar médicos especialistas a locais remotos em tempo real. Nos Açores, o projeto Diagnósticos à Distância reduziu de quatro meses para duas semanas o tempo médio de espera por ecocardiogramas nas ilhas sem cardiologista residente (Direção Regional da Saúde dos Açores, 2024). Este encurtamento de prazos impacta diretamente o prognóstico de doentes cardíacos e a capacidade de intervenção precoce.
Em escala internacional, as Maldivas oferecem outro exemplo relevante. O programa eHealth Maldives, desenvolvido em parceria com a Organização Mundial da Saúde, utiliza IA para análise remota de exames e dados clínicos, reduzindo evacuações desnecessárias e promovendo maior autonomia local na prestação de cuidados (WHO, 2023). A integração com dispositivos vestíveis e sensores ambientais abre caminho para modelos de monitorização contínua em territórios vulneráveis a catástrofes naturais ou surtos epidémicos.
Apesar dos avanços, a implementação tecnológica enfrenta barreiras significativas. A cobertura de banda larga continua desigual, sobretudo em ilhas montanhosas e áreas rurais isoladas. Muitos projetos inovadores permanecem confinados a pilotos experimentais sem continuidade operacional, o que fragiliza a confiança pública. A literacia digital, tanto da população quanto de alguns profissionais de saúde, limita o aproveitamento pleno das ferramentas disponíveis. Além disto, há resistências culturais e desconfiança em relação à substituição de interações presenciais por soluções digitais (Almeida & Nunes, 2024). Para superar estas barreiras, torna-se essencial uma abordagem multissetorial, articulando governos, universidades, startups e comunidades locais em torno de objetivos comuns de saúde digital e inclusão tecnológica.
As novas tecnologias também alteram a gestão da saúde. O uso de drones e IA não deve ser visto apenas como suporte operacional, mas como instrumento de soberania tecnológica e desenvolvimento local. Ao reduzir a dependência de grandes centros urbanos e criar oportunidades para empresas de base tecnológica, estas inovações estimulam o empreendedorismo regional. Além disto, a transição para modelos digitais e logísticos mais eficientes favorece a sustentabilidade ambiental, ao diminuir deslocações aéreas e marítimas desnecessárias. A Comissão Europeia reconhece o potencial das RUP como “laboratórios vivos” (living labs) de inovação em saúde, cujas soluções podem inspirar outros territórios periféricos e insulares (European Commission, 2023).
A ligação entre tecnologia e resiliência climática merece destaque. Eventos extremos como tempestades, inundações e incêndios têm impacto direto na saúde e na logística destas regiões. Sistemas de monitorização remota e modelos inovadores alimentados por IA podem antecipar riscos e otimizar respostas de emergência. A integração entre saúde digital e gestão ambiental torna-se estratégica, permitindo acompanhar populações vulneráveis, prever surtos associados a alterações ambientais e preparar planos de evacuação mais eficazes. Esta abordagem integrada reforça a segurança sanitária e aumenta a capacidade adaptativa das RUP frente às mudanças climáticas.
As RUP, historicamente vistas como periferias dependentes, começam a afirmar-se como protagonistas da inovação em saúde. A conjugação de drones médicos, telediagnóstico e inteligência artificial está a transformar a prestação de cuidados, reduzindo desigualdades e ampliando a autonomia local. No entanto, para que este potencial se traduza em benefícios duradouros, é indispensável investir na formação de profissionais, na atualização de infraestruturas digitais e na criação de políticas públicas inclusivas que integrem estas soluções nos sistemas de saúde nacionais.
Mais do que beneficiárias passivas de inovação, estas regiões podem tornar-se criadoras de soluções globais. A experiência adquirida em ambientes desafiadores, marcados por isolamento geográfico e riscos climáticos, oferece lições valiosas para outros territórios remotos e vulneráveis. Ao transformar limitações estruturais em oportunidades de experimentação tecnológica, as RUP mostram que o futuro da saúde digital não está apenas nos grandes centros urbanos, mas também nos horizontes mais distantes da geografia europeia.
Referências Bibliográficas
Almeida, S., & Nunes, F. (2024). Parcerias multissetoriais em saúde digital em Portugal. Política & Sociedade, 23(1), 112–131.
Direção Regional da Saúde dos Açores. (2024). Projeto Diagnósticos à Distância – Relatório Técnico.
European Commission. (2023). Harnessing Innovation in the EU’s Outermost Regions: Policy Paper.
OECD. (2022). Regions in the World 2022: Health, Education and Digital Infrastructure. OECD Publishing.
Pereira, A., Gouveia, C., & Santos, R. (2023). Disparidades regionais no acesso à saúde em Portugal. Revista Portuguesa de Saúde Pública, 41(2), 85–97.
Rodríguez, M., González, L., & Méndez, A. (2024). Drones sanitarios en Canarias: Una experiencia piloto de logística médica. Gaceta Sanitaria, 38(1), 52–59.
SESARAM. (2024). DroneCare RAM – Relatório de Execução Técnica 2023/24. Funchal: Serviço de Saúde da Região Autónoma da Madeira.
WHO. (2023). Digital Health Strategy for Island States: The Case of Maldives. World Health Organization.
Zipline. (2024). Annual Impact Report: Drone Delivery for Health Equity. https://flyzipline.com



