A invocação do Artigo 4º do Tratado do Atlântico Norte pela Polónia, em resposta à escalada de tensões na fronteira oriental da Europa após a invasão russa da Ucrânia, reabriu de forma dramática o debate sobre a arquitetura de segurança europeia e sobre o lugar singular de Varsóvia neste equilíbrio geopolítico. Raramente utilizado na história da NATO, o Artigo 4º, que prevê consultas entre aliados quando um deles considera ameaçada a sua segurança, sinaliza não apenas a gravidade da situação percebida pela liderança polaca, mas também a estratégia diplomática de dupla pertença que o país tem cultivado: uma participação plena na União Europeia (UE), com as suas ambições de autonomia estratégica, e uma dependência profunda da proteção militar norte-americana no quadro da NATO (NATO, 2022). Esta duplicidade não deve ser lida como contradição, mas como estratégia deliberada, moldada por fatores históricos, geopolíticos e ideológicos. Entender a “dupla diplomacia” polaca é compreender o modo como um Estado intermédio procura maximizar segurança num sistema internacional em mutação (Wojciuk & Zięba, 2021).
A invocação do Artigo 4º serviu simultaneamente como alarme e como mensagem política em duas direções distintas. Para Bruxelas, a medida foi um lembrete dos limites da Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD) e do ainda incipiente projeto de autonomia estratégica europeia. Para Washington, foi uma reafirmação da centralidade da NATO e da lealdade polaca ao vínculo transatlântico (Chatham House, 2022). A Polónia, desta forma, atua em dois tabuleiros, pressionando a União Europeia a reforçar as suas capacidades, enquanto garante que os Estados Unidos permanecem o garante final da segurança no continente. Este jogo de duplicidade é coerente com a perceção histórica de ameaça que estrutura a política externa de Varsóvia.
A memória histórica desempenha um papel determinante na orientação estratégica da Polónia. Situada entre impérios e frequentemente vítima de invasões e repartições, a Polónia construiu uma narrativa de vulnerabilidade geopolítica que permanece viva até hoje. O período de ocupação soviética consolidou uma desconfiança estrutural em relação a Moscovo e a convicção de que a Rússia constitui uma ameaça existencial permanente (Zięba, 2019). Esta perceção distingue a Polónia de vários parceiros da Europa ocidental, que, até recentemente, preferiam conceber a Rússia como parceiro ambivalente ou inevitável. Assim, ao invocar o Artigo 4º, Varsóvia não reagiu apenas a desenvolvimentos concretos no Leste, mas reafirmou a sua visão estratégica de longo prazo: sem os Estados Unidos, a Europa está vulnerável; sem uma voz firme do Leste, a União tende a subestimar a ameaça russa.
No plano europeu, a estratégia polaca expõe tensões persistentes entre o projeto de autonomia estratégica da União Europeia e a centralidade da NATO. Desde a Global Strategy de 2016, Bruxelas tem insistido na necessidade de uma Europa “mais forte e mais soberana” em matéria de segurança e defesa (European Union External Action Service, 2016). No entanto, Estados-membros da Europa Central e Oriental, incluindo a Polónia, mantêm reservas quanto à suficiência destas ambições. Para Varsóvia, a prioridade continua a ser o reforço do compromisso norte-americano. Enquanto a França insiste na autonomia estratégica, a Polónia insiste na centralidade da NATO (Fiott, 2018). Esta divergência reflete diferentes geografias políticas: do lado ocidental, há margem para pensar em soberania europeia; do lado oriental, a proximidade da Rússia torna o vínculo transatlântico uma necessidade vital.
A relação bilateral com os Estados Unidos é central para esta equação. A Polónia tem investido intensamente em aprofundar a cooperação militar com Washington, incluindo a instalação de bases, a rotação de tropas e a aquisição de armamento norte-americano (Buras, 2022). Esta ligação é vista como seguro de vida e reforça a posição de Varsóvia como “boa aluna” da NATO, contrastando com Estados ocidentais frequentemente acusados de subinvestimento em defesa. Ao mesmo tempo, a pertença à União Europeia garante fundos estruturais, integração económica e peso político. A “dupla diplomacia” polaca não é indecisão, mas maximização de ganhos em duas arenas complementares. Como nota Zięba (2019), esta postura cria tensões de compatibilidade com a UE, mas é coerente com a tradição polaca de segurança.
Do ponto de vista teórico, esta postura pode ser interpretada através do conceito de hedging — estratégia pela qual Estados intermédios procuram equilibrar-se entre potências maiores, mitigando riscos através da diversificação de alianças (Kuik, 2008). A Polónia não rejeita Bruxelas nem Washington, mas procura extrair garantias de ambos. No entanto, esta posição tem custos: gera desconfiança em parceiros europeus, que veem Varsóvia como excessivamente dependente dos EUA, e limita a sua influência em projetos de defesa europeia mais ambiciosos (Carnegie Europe, 2023). Ainda assim, em momentos de crise, a invocação do Artigo 4º sugere que Varsóvia prioriza o vínculo transatlântico, reconhecendo a assimetria de poder militar entre a NATO e a União.
O impacto da decisão polaca ultrapassa a sua própria fronteira. Para a NATO, reforça a relevância do mecanismo de consultas políticas como instrumento de coesão e dissuasão (NATO, 2022). Para a União Europeia, evidencia a fragilidade de um sistema que, apesar de avanços institucionais, continua dependente do guarda-chuva norte-americano (Fiott, 2018). Para Moscovo, sinaliza que a Polónia se assume como bastião da defesa ocidental, justificando, na narrativa russa, retórica hostil e contra-medidas (Snyder, 2018). Assim, a Polónia fala para três públicos ao mesmo tempo: aliados europeus, Washington e Moscovo. É nesta simultaneidade que se revela a essência da sua dupla diplomacia.
Internamente, a invocação do Artigo 4º reforça a narrativa securitária do governo polaco, mobilizando o medo externo como recurso político doméstico. Em sociedades com memória histórica de ameaça, a política de segurança torna-se instrumento de legitimação interna (Zięba, 2019). A diplomacia externa e a política interna entrelaçam-se: a tensão internacional é traduzida em capital político, enquanto a retórica de ameaça reforça consensos domésticos. Snyder (2018) observa que a relação entre democracia, autoritarismo e geopolítica na Europa Central é continuamente mediada pela perceção de vulnerabilidade externa.
Ainda que a duplicidade não seja exclusiva da Polónia — vários Estados europeus equilibram compromissos com a NATO e ambições de defesa comum —, Varsóvia distingue-se pela intensidade do seu alinhamento com Washington e pela clareza da sua perceção de ameaça. A Polónia torna-se, assim, um caso-limite que expõe as contradições do projeto europeu: é possível construir autonomia estratégica sem alienar Estados que confiam mais nos EUA do que em Bruxelas? Pode a OTAN continuar central sem enfraquecer a coesão europeia? O gesto polaco, ainda que limitado em efeitos práticos, reaviva estas questões fundamentais.
Em síntese, a invocação do Artigo 4º deve ser entendida menos como reação pontual e mais como ato de posicionamento estratégico. Ao acionar este mecanismo, Varsóvia lembra os parceiros de que a segurança europeia continua dependente do vínculo transatlântico e que a geografia e a história conferem à Polónia um papel singular neste equilíbrio. A sua dupla diplomacia, entre Bruxelas e Washington, é simultaneamente fonte de força e de vulnerabilidade. Força, porque maximiza apoios e coloca o país no centro da segurança continental. Vulnerabilidade, porque expõe contradições e limita a construção de uma estratégia europeia unificada. No futuro imediato, a Europa terá de decidir se integra esta duplicidade como parte da sua identidade estratégica ou se procura superá-la em direção à maior coesão. Varsóvia, com a sua voz insistente, continuará a lembrar que, no continente europeu, a geopolítica raramente concede o luxo da neutralidade.
Referências Bibliográficas
Buras, P. (2022). Poland’s security policy after Russia’s invasion of Ukraine. European Council on Foreign Relations. Retrieved from https://ecfr.eu
Carnegie Europe. (2023). Europe’s strategic compass and the war in Ukraine. Brussels: Carnegie Europe.
Chatham House. (2022). NATO, the EU and the war in Ukraine: Implications for European security. London: Chatham House.
European Union External Action Service. (2016). Shared vision, common action: A stronger Europe – A global strategy for the European Union’s foreign and security policy. Brussels: EU. Retrieved from https://eeas.europa.eu
Fiott, D. (2018). Strategic autonomy: Towards European sovereignty in defence? EUISS Brief, 12. European Union Institute for Security Studies. Retrieved from https://www.iss.europa.eu
Kuik, C. (2008). The essence of hedging: Malaysia and Singapore’s response to a rising China. Contemporary Southeast Asia, 30(2), 159–185. https://doi.org/10.1355/cs30-2a
NATO. (2022). North Atlantic Treaty Organization: Official texts and consultations. Brussels: NATO. Retrieved from https://www.nato.int
Snyder, T. (2018). The road to unfreedom: Russia, Europe, America. New York: Tim Duggan Books.
Wojciuk, A., & Zięba, R. (2021). Poland in NATO and the European Union: Between Atlanticism and Europeanism. Polish Political Science Yearbook, 50(2), 99–118. https://doi.org/10.15804/ppsy202121
Zięba, R. (2019). Poland’s foreign and security policy: Problems of compatibility with the European Union. Journal of Contemporary European Research, 15(4), 319–336. https://doi.org/10.30950/jcer.v15i4