Ao término das sessões cinematográficas do longa-metragem “Kickflip” (2025, de Lucca Filippin), as reações de espanto são evidentes: de um lado, espectadores que ficaram fascinados ao reconhecer múltiplas referências sustentaculares na obra, para além das homenagens a temáticas abordadas por Larry Clark, Gus Van Sant, Harmony Korine e cineastas congêneres; do outro, pessoas aturdidas diante das novidades propostas por este jovem realizador campinense, que conta com uma equipe extremamente cúmplice, no que tange à reconstituição de “fatias do tempo” que emulam o cotidiano de adolescentes entediados que passam parte considerável de suas rotinas compartilhando frustrações nas redes sociais. Entre uns e outros, a certeza de que este filme condiz perfeitamente com a pergunta que norteou a vigésima oitava edição da Mostra de Cinema Brasileiro de Tiradentes, em Minas Gerais: “que cinema é esse?”.
Protagonizado por Sofia Librandi e Pedro Transfereti, que interpretam personagens cujos nomes sequer são pronunciados, “Kickflip” compartilha, ao longo de oitenta e oito minutos, situações que, na maneira como são montadas, metonimizam a manobra titular: os dois garotos estão quase sempre juntos, inventando maneiras ingênuas de entretenimento, como quem engole mais ‘marshmallows’, num desafio de Internet, ou quem adivinha qual parte do corpo está sendo tocada com o dedo, enquanto alguém está com os olhos vendados. Diante disso, a solidão de ambos é hipertrofiada através do excesso de exposição: quanto mais eles se afastam, mais sofrem…
Desencadeador de um verdadeiro terremoto de idéias por onde passa, “Kickflip” surpreende pela maneira como simula vídeos caseiros, enquanto insere pretextos tramáticos fugidios, como aqueles vinculados à participação da personagem da mãe (Adriana Filippin), que nutre uma obsessão por armas, quiçá decorrente do trauma relacionado à perda de um filho mais velho, que nunca chegou a usar o skate que ganhara. Não sabemos muito sobre esta personagem, tanto quanto os demais, mas a sua presença possui diversos aspectos contrastantes: primeiro, porque pertence a ela a cena mais ostensivamente “simulada” de toda a produção, que é quando ela abre o guarda-roupa e alisa o skate supracitado, enquanto chora; segundo, porque, numa sequência discursivamente sintomática, quando o seu filho pede que ela o grave realizando algumas manobras, ela direciona a câmera para si mesma, num ‘close-up’ deformado, para, logo em seguida, enquadrar o garoto de cabeça para baixo; e terceiro, porque não há abertura para o humor quando ela está em cena. É um lembrete de que o fantasma do bolsonarismo assombra a aparente apoliticidade daquela conjuntura citadina…
Sendo assim, passamos a prestar atenção a um aspecto fundamental da direção de arte: os cenários pelos quais os personagens transitam poderiam estar em qualquer cidade do mundo, visto que correspondem a áreas de consumo de empresas multinacionais (McDonald’s à frente) e às ruínas do que parece uma loja de materiais de construção abandonada. O fato de os personagens comunicarem-se em inglês na maior parte dos diálogos (ou, principalmente, monólogos) possui um caráter internamente analítico, no sentido de que eles reconfiguram a pecha culturalmente dominadora do idioma em pauta, em prol de uma “linguagem universal”, intencionalmente geracional. demarcada por frases de efeito sobre a inevitabilidade suicida: afinal, o que mais se pode fazer quando se perde o melhor amigo?
Fotografado pelo jovem Nandê Caetano, que eventualmente expõe o contexto de filmagem das cenas, numa estratégia reflexivamente metalinguística, “Kickflip” dialoga não apenas com produções contemporâneas que aproveitam a estética dos novos aparatos comunicacionais, mas também evoca a tradição clássica do cinema experimental, e suas descobertas intemporais. Há, inclusive, um evidente incremento homoerótico na relação entre os dois amigos, com momentos culminantes, como a cena em que, após derramarem chantili um no outro, o personagem de Pedro observa os restos de espuma em seu braço como se contemplasse uma ejaculação, ou quando ele ingere de maneira ávida os ‘marshmallows’ cuspidos por seu amigo. Cabe a ele ser incompreendido por fazer “coisas de viado”, buscando companhias fugazes em conversas digitais no ‘site’ Omegle, destinado prioritariamente a exposições de encontros pornográficos. Intencionalmente evasivo, o enredo faz com que o espectador pense que uma chacina ocorrerá a partir de determinado momento, já que, após ter o seu skate quebrado por dois skatistas mais velhos, um dos garotos empunha uma espada, depois de gritar, num viaduto, “perdão é o caralho”. O desfecho do filme, entretanto, segue outro rumo: opta por continuar em nossas mentes e engendrar debates acerca daquilo que ele provoca. É o novíssimo cinema brasileiro em prática transformadora!
Wesley Pereira de Castro.
Foto de divulgação disponível em: https://a.ltrbxd.com/resized/sm/upload/t3/5p/9r/5n/qajPvaGXMcmMlgrjXuC5KbXavEv-1200-1200-675-675-crop-000000.jpg?v=8fd2fb1a3c