Quando ligamos a TV e descobrimos que, poucos dias após um homem ter sido morto, enquanto consequência da explosão da bomba que ele atirou contra o prédio do Supremo Tribunal Federal, um punhado de militares foi preso por organizar a tentativa de assassinato do presidente e do vice-presidente do Brasil, ficamos imediatamente aterrorizados: o que está acontecendo com o País?! Para alguns, diante de notícias chocantes e/ou assustadoras, a opção imediata é ter acesso a obras de arte evasivas, comprometidas mais com a vendabilidade que com a reflexão dos consumidores. Se, por um lado, isto configura uma reação protetoral quase automática (e parcial, no sentido de que a realidade daquilo que incomoda sempre nos alcança), por outro, até mesmo a mais subestimada das obras ficcionais traz consigo algo instigante, nas entrelinhas de sua feitura.
O lançamento, em 2015, do livro “Um Ano Inesquecível”, composto por quatro novelas românticas, cada uma delas concernente a uma estação do ano, animou parte do mercado editorial destinado ao público infanto-juvenil, mas gerou alguma desconfiança entre críticos literários sisudos, que rejeitam tramas intencionalmente escapistas. O mesmo ocorreu quando, em 2022, foi anunciada, pelo serviço de ‘streaming’ Amazon Prime Video, a produção e o posterior lançamento de uma quadrilogia de filmes, baseados nas novelas em pauta. Aproveitaremos esta deixa para falar sobre a primeira destas novelas, “Enquanto a Neve Cair”, de Paula Pimenta, que deu origem ao longa-metragem “Um Ano Inesquecível: Inverno” (2023, de Caroline Fioratti).
Na versão literária, acompanhamos, em primeira pessoa, o relato da adolescente Mabel, prestes a completar quinze anos de idade, que, enquanto se organizava para participar de uma festa numa casa de campo, onde encontraria o rapaz por quem está apaixonada (sem ser efetivamente correspondida), recebe a informação súbita de que terá de viajar para o Chile, com seu pai, sua mãe e seu irmão mais novo, Dudu. Privada de seu telefone celular, ela fica emburrada a maior parte do tempo, até que passa a encontrar, com muita frequência, um jovem instrutor de esqui, Benjamin, que a salvará de ficar perdida num local ermo e por quem, obviamente, ela se apaixonará, apesar de relutar em admitir isso. Ao final, admitirá: “com ele, qualquer estação do ano seria inesquecível”… O que há de político na observação das futilidades de uma pirralha?
Em “Enquanto a Neve Cair”, as condições privilegiadas de classe da protagonista são postas em primeiro plano, de modo que o comportamento caprichoso, irritadiço e mimado de Mabel por vezes nos irrita, não obstante torcermos para que seus problemas sejam resolvidos através do reconhecimento de um novo amor. Na versão cinematográfica, por sua vez, as alterações são marcantes, no sentido de que a diretora Caroline Fioratti surpreende por erigir uma obra autoral, mesmo incorrendo nas mesmas características de classe média alta de seus personagens. Porém, ela constrói os dramas dos mesmos a partir da integração problemática entre eles e o ambiente que os circunda (e geralmente os oprime). Foi o que percebemos nos interessantíssimos “Meus 15 Anos” (2017) e “Meu Casulo de Drywall” (2023), sendo que, neste último, ela trabalha questões como a hipocrisia de políticos conservadores, em seu cotidiano homofóbico, e as ideações suicidas advindas de um contexto em que as mulheres são tratadas com violência, por seus esposos.
Numa abordagem distinta da que ocorre no livro, apesar de aproveitar o mesmo arco narrativo, em “Um Ano Inesquecível: Inverno”, Mabel (vivida pela ótima Maitê Padilha) está terminando o Ensino Médio e tenciona viajar com suas melhores amigas para uma praia. No Chile, irritada por estar se sentindo sozinha, ela conhece o instrutor Benjamin (Michel Joelsas), e encontra uma comunidade de amigos, capitaneada por Glauco (interpretado por Guilherme Terreri, famoso por dar vida à ‘drag queen’ Rita von Hunty), que se reúne para enfrentar os medos mais recônditos, a partir de referências intelectuais. Como Mabel tem o sonho de tornar-se escritora, ela aproveita que sua mãe, Flávia (Letícia Spiller), é uma conceituada telejornalista e pede-lhe dicas de como pode se aproximar destes amigos, como se fosse uma repórter infiltrada, a fim de utilizar os seus relatos para escrever o manuscrito de um enredo dramático, inscrevendo-o num concurso a ser julgado por uma autora de quem ela é fã. Ela lidará tanto com seus traumas quanto com os de seus companheiros, o que permite que ela descubra a si mesma, percebendo que jamais conseguirá ser feliz enquanto concentrar as suas escolhas sob as expectativas de outrem. Nessa perspectiva, o roteiro — escrito por Ângela Hirata Fabri e pela autora da novela original — abre espaço para uma discussão pormenorizada sobre a depressão juvenil e sobre questões como a inaceitação da paixão homossexual, por parte de uma mãe preconceituosa, e os preconceitos contra corpos que fogem ao padrão dominante (leia-se: impositivo) de beleza. Ao invés dos quiproquós amorosos do livro, há uma ampliação discursiva, a fim de inserir questões identitaristas, para as quais regravações contemporâneas da canção “Sujeito de Sorte” de Belchior, serão utilizadas, à guisa de redirecionamento. É um filme que, em sua adaptação, revela algo sobremaneira oportuno, a partir do que é desenhado na obra original, em seu entendimento das frustrações cumulativas da protagonista. Falaremos sobre os demais capítulos desta quadrilogia literário-cinematográfica à frente, portanto.
Wesley Pereira de Castro.
Uma resposta
Parabéns meu nobre amigo Wesley. Seus textos são espetaculares.