Quando “A Semente da Figueira Sagrada” (2024, de Mohammad Rasoulof) foi exibido no Festival Internacional de Cinema de Cannes, no último dia das sessões competitivas, os críticos foram prontamente unânimes na consideração de que este era o melhor filme do certame. Alguns jornalistas foram embora, antes da exibição em pauta, pois já haviam escolhido os seus favoritos, descrentes de que um forte candidato à Palma de Ouro surgiria no derradeiro momento. Na cerimônia de premiação, o filme recebeu apenas uma láurea especial, criada para compensar o fato de que a presidenta do Júri, Greta Gerwig, simpatizara com outra obra — o que é absolutamente lícito. Porém, ela não pôde ignorar a pujança deste enredo mui contundente sobre os maus tratos sofridos pelas mulheres que vivem sob a teocracia iraniana…
O diretor do filme chegou ao festival como fugitivo: ele fora condenado, em seu país natal, a oito anos de prisão, além de chibatadas e pagamento de multas, por “conspirar contra a segurança nacional”. O que é mostrado em seu filme foi considerado extremamente ofensivo pelas autoridades locais, no sentido de que ele utiliza imagens reais dos protestos femininos contra o uso obrigatório do véu islâmico, no Irã. E isto é tematizado de maneira perturbadora, num filme que muda radicalmente de tom, em seu terço final. As interpretações do quarteto central são maravilhosas e o roteiro, escrito pelo próprio diretor, apresenta-nos a aspectos urbanos da capital do país, nas regiões habitadas pelos economicamente favorecidos.
“A Semente da Figueira Sagrada” começa com um letreiro que explica o título: a espécie vegetal Ficus religiosa, conhecida popularmente como figueira-dos-pagodes, é uma árvore que, após ter as suas sementes transportadas por pássaros, germina sobre a copa de outras árvores, até que suas raízes são enroladas em torno da espécie hospedeira, estrangulando-a gradualmente. É uma metáfora para o que ocorre na família representada: o pai, Iman (Missagh Zareh) é um advogado que, por mais de vinte anos, alimenta o sonho de tornar-se juiz. De repente, ele recebe uma promoção e vai morar numa área cobiçada de Teerã, com todos os benefícios aquisitivos relacionados à profissão. Sua esposa Najmeh (Soheila Golestani), entretanto, está ciente de que precisará controlar os comportamentos de suas duas filhas, Rezvan (Mahsa Rostami), mais velha, e a adolescente Sana (Setareh Maleki), que gostam de pintar as unhas, utilizar maquiagem e uma delas até tem vontade de pintar o cabelo de azul!
Ambas as garotas passam parte considerável de seus tempos livres mexendo na internet e publicando fotos e textos nas redes sociais. Ao conhecerem a interiorana Sadaf (Niousha Akhshi), que estuda com Rezvan, elas entram em contato com os gritos de revolta das moças da cidade. Acompanham as agressões policiais sofridas por elas, enquanto, na televisão, as notícias são abrandadas e manipuladas, convencendo a crédula e obediente Najmeh. Paralelamente, Iman é cada vez mais pressionado em seu trabalho, sendo obrigado a condenar à morte diversas pessoas que foram presas durante as manifestações públicas, sem sequer avaliar os seus processos. Quando Sadaf é presa e uma arma desaparece na residência de Iman, a família outrora feliz tem seus laços de afeto sufocados pelas exigências ditatoriais: a prioridade agora é defender a ideologia opressora. Para tal, um coeficiente progressivo de paranoia institucional é requerido!
Não revelaremos o que acontece daqui por diante, até porque, aproveitando os apanágios de seus trabalhos anteriores [sobretudo, o premiado “Não Há Mal Algum” (2020)], o diretor Mohammad Rasoulof converte o desfecho num exercício de suspense asfixiante, que culmina, mais uma vez, no aproveitamento de imagens reais das rebeliões feministas. Era óbvio que o filme causaria um extremo desconforto nacional, mas o realizador não foi condescendente ou temeroso. Pelo contrário, denuncia a terrível situação das esposas subjugadas (que não deixam de serem também apaixonadas), através de sequências tão sutis quanto geniais, como o instante em ‘close-up’ em que Najmeh apara o cabelo de Iman; quando ela diz que ele não deve perder a fé por conta da significação de seu nome (imã é uma importante designação clerical muçulmana); e a situação em que ela confessa para as filhas que “sempre escondeu delas as verdadeiras cores de seu pai”. As garotas, por sua vez, refutam de maneira corajosa a autoridade paterna. Na maneira direta e realista com que mostra o cotidiano doméstico daquela família, o filme encoraja reações similares de rebeldia, não obstante ignorar, naquilo que expõe, as falácias e notícias falsas que também abundam da Internet. Por méritos assaz elogiáveis, esta controversa produção estará nas listas de melhores filmes do ano de vários cinéfilos: é um petardo político e emocional de primeiríssimo quilate!
Wesley Pereira de Castro.