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A ausência sentida, quando advinda de uma morte anunciada

A ausência sentida, quando advinda de uma morte anunciada

Ao realizar “Elegia de um Crime”(2018), o diretor Cristiano Burlan encerra aquela que passou a ser descrita como “trilogia do luto”, na qual descreve documentalmente três assassinatos ocorridos em sua família: primeiro, o falecimento ainda inexplicado de seu pai, emulado em “Construção”; em seguida, a brutal execução que é ostensivamente denunciada no título de “Mataram Meu Irmão” (2013); e, por fim, o feminicídio de sua própria mãe, no filme atualmente em pauta. Não obstante a intimidade dolorosa do tema, este diretor evita uma abordagem lacrimejante nos filmes: serve dos recursos audiovisuais como “vingança”, conforme ele próprio esclarece numa das seqüências derradeiras de seu filme mais recente. E convém reagirmos ao petardo emocional decorrente desta audiência, por mais que o sentimentalismo seja ardorosamente evitado.

Iniciando o filme com uma tentativa de denunciar telefonicamente o paradeiro do assassino foragido de sua mãe, Cristiano Burlan tem o seu clamor redirecionado, pelo policial do outro lado da linha, a uma série de procrastinações burocráticas, que revelam-se inúteis para a captura do criminoso. Na locução, o diretor fala que segura uma foto da mãe em suas mãos, mas que esta parece ficar mais borrada a cada instante, visto que já se passaram sete anos desde que ela fora encontrada morta, enforcada em sua própria cama. Ao relatar que soubera deste assassinato a partir das imagens chocantes de um programa sensacionalista de TV, o diretor instaura um sentido de autocrítica que alcança o seu próprio projeto – um tanto mórbido – de tematizar tão proximamente a morte. Teria como ser diferente, vivendo ele o que viveu?

Numa entrevista concedida como divulgação do filme, o diretor confessa que, no funeral de sua mãe, quase não conseguiu chorar. Preocupava-se, ao invés disso, em filmar a cerimônia de despedida de quem tanto o amou. Repete esta confissão na narração do documentário, mas as imagens deste funeral não aparecem no filme. A lápide do local onde a sua mãe está enterrada, sim. Deparamo-nos, na prática, com uma nova maneira de questionar o próprio cotidiano do realizador, enquanto ele imerge na feitura de uma obra cinematográfica: onde começa a vida e onde termina o filme (ou vice-versa)? O próprio diretor responde, na mesma entrevista supracitada: “eu não consegui terminar o filme. Ele era maior que eu. Eu apenas o interrompi!”.

Ao definir o subgênero cinematográfico disseminado hodiernamente como “filme-ensaio”, o pesquisador Timothy Corrigan enfatiza a ostensividade de uma subjetividade expressa enquanto perspectiva condutora daquilo que é apresentado documentalmente. Nas palavras dele, “como dimensão especial da política dos filmes-ensaio, o encontro entre um eu aberto e protéico e a experiência social produz a atividade do pensamento ensaístico”, o que aplica-se muito bem ao processo fílmico (muito mais que um produto) que atende pelo nome de “Elegia de um Crime”. Não por acaso, a segunda metade no filme testemunha o reencontro entre o diretor e a jornalista que noticiou televisivamente a descoberta do cadáver de sua mãe. Apesar de aposentada, ela defende a efetividade deste tipo de reportagem chocante – útil como evidência em processos judiciais sobre crimes hediondos, conforme ela apregoa – e une-se ao diretor na busca pelo paradeiro atual do assassino foragido. E é a partir deste momento que o filme perde o seu foco inicial e decai. Torna-se esquemático em proposição intencional, afinal justificada pelos apanágios humanos de seu realizador. Cristiano Burlan ainda sente raiva, o que é afetivamente compreensível mas filmicamente questionável. Mais uma vez, pergunta-se: como separar um aspecto do outro?

Num dos melhores (e mais emocionantes) momentos do filme, Cristiano Burlan conversa com uma das suas irmãs, que reluta em admitir que sabia que ele era adotado e que rememora algumas conversas íntimas com a mãe. Numa seqüência posterior, eles revisitam a casa onde ela foi assassinada e comentam sobre a paixão dela por plantas, cujas mudas medram melhor quando roubadas, e não compradas ou ganhadas. Paradoxalmente, os roubos eram comuns entre os familiares do diretor, de modo que vários de seus irmãos foram condenados e/ou procurados por assaltos, desde aquele que foi assassinado e documentado num filme anterior até aquele que concede uma entrevista em “Elegia de um Crime”, e é novamente aprisionado depois que exibe os seus calos para a câmera. “Quando eu pegava num revólver para roubar, eu não tinha tantos calos nas mãos, mas agora que acordo todos os dias às cinco horas da manhã para trabalhar, os tenho!”. É mais ou menos o que ele explica para um policial que o julgava como ex-presidiário. Infelizmente, na prática…

Um dos méritos mais elogiáveis desta “trilogia do luto”, portanto, é a de evitar simplismos moralistas, por mais subjetiva que seja a sua condução. Num momento quiçá dispensável (se o julgamento moralista coubesse), Cristiano Burlan é mostrado treinando tiro ao alvo. Noutra situação, um de seus parentes mais velhos comenta que a sua mãe, Isabel, era “bonita demais e condenada a sofrer por causa disso. Veio ao mundo para sofrer – e como sofreu esta mulher!”. O filme, portanto, é construído a partir de depoimentos saudosos, de fotografias encontradas tardiamente, de sentimentos confusos, que misturam-se a outros sentimentos, como quando a irmã de Cristiano Burlan comenta que jamais esquecerá a data em que seu irmão Rafael foi assassinado, pois isso ocorreu a poucos dias de seu aniversário de quinze anos. Com uma trajetória pessoal tão demarcada por tragédias, o realizador de “Elegia de um Crime” faz o possível para expurgar-se através da arte. Neste sentido, é merecedor de toda a nossa reverência espectatorial!

 

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