Em razão das medidas de distanciamento social sugeridas como maneira de impedir que a pandemia desencadeada pelo COVID-19 espalhe-se ainda mais, inúmeros eventos e concertos precisaram ser cancelados ao redor do mundo. No Brasil, exceto pelos telejornais, programas de variedades e um ‘reality show’ específico (sobre o qual voltaremos a falar, por motivos oportunos, nesse texto), as demais atrações televisivas estão sendo reprisadas. O jargão admoestativo “fique em casa” é repetido à exaustão nas campanhas publicitárias e determinações governamentais – com uma única e determinante ausência: o desdém genocida do presidente Jair Messias Bolsonaro. E foi nesse contexto que o ‘rapper’ baiano Baco Exú do Blues lançou o seu mais recente disco…
Disponibilizado virtualmente no dia 30 de março de 2020, o EP “Não Tem Bacanal na Quarentena” é, desde já, um dos melhores e mais inteligentes lançamentos do ano. Não bastasse a sua genialidade peculiar, já amplamente demonstrada em trabalhos anteriores, Baco Exú do Blues surpreende pela capacidade mui célere de inserir eventos ainda em curso entre as reivindicações de suas letras. É uma obra extremamente urgente que, além de cumprir requisitos políticos essencialmente atrelados ao gênero musical de que faz parte, não descuida do requinte harmônico na concatenação entre os versos e trechos falados, extraídos dos meios de comunicação de massa. Não serão economizados elogios aqui: é um disco genial!
Composto por nove faixas curtas, este álbum inicia-se com um verdadeiro hino de resistência que tem a ver com a própria trajetória ascendente de Baco Exú do Blues. Em “Jovem Preto Rico” (faixa 01), o autor insurge-se contra a reiteração midiática do estereótipo conveniente do negro viciado em drogas. Segundo ele, ser negro e rico seria “perigoso”, visto que, a todo momento, esta origem aquisitiva seria questionada por policiais e pela sociedade em geral, em que os preconceitos históricos animalizam parte considerável da população, inclusive no Estado da Bahia, onde há a maior concentração de negros do país. Em dois minutos e vinte e três segundos, o cantor já dispara um petardo ideológico de primeiro quilate: definitivamente, este não será um disco condescendente!
A faixa 02, “Tudo Vai Dar Certo”, aparentemente muda o tom, mas enfatiza uma das marcas registradas do cantor e compositor: a sua extrema sexualidade orgânica, ou seja, práticas erotógenas que são indissociadas de outros âmbitos cotidianos. Primeiro verso da letra: “Acordei com um oral dela no deserto do Chile”. Ao final, gritos que se tornaram freqüentes em panelaços contra o atual presidente brasileiro: “Fora Bolsonaro!” e “fascista!” são frases coléricas ouvidas em meio à repetição da frase titular. O que será que vai dar certo, portanto?
Na faixa 03, “Ela é Gostosa pra Caralho”, o apanágio da sensualidade é antecipado graças à proferição de uma espécie de referência interna, a “Facção Carinhosa”, que é evocada em diversas canções do autor. Sem pudores na descrição de práticas sexuais e palavras consideradas chulas, Baco Exú do Blues redefine algo que, para quem não vivencia aquelas experiências, é descrito como revestido de toxicidade. Exemplo: “me abraça pra dizer que vai embora/ Me beija pra dizer que não pode ficar (não, não)/ Tira minha roupa, mas jura não me amar/ Abre as pernas e me diz que eu não devia ter saído de lá/ Porque terminou comigo e continua ligando/ Sinceramente, não consigo te entender/ Jura que eu não presto continua sentando/ Se não me valorizar, prometo que vai me perder”. Estes versos falam por si mesmos. Ou melhor, cantam!
Na faixa 04, “Preso em Casa Cheio de Tesão”, o autor unifica lubricidade e política de maneira sublime: contando com a linda voz da funkeira Lellê como contraponto dialogístico, Baco Exú do Blues dispara: “Eu botaria um filho nosso no mundo, se pretos não sofressem tanto”. Ou seja, por mais afobado que o eu-lírico seja no saciamento de seus desejos eróticos, ele não ignora as nuanças protestantes da sexualidade, o que retorna de maneira atordoante na próxima faixa, “Humanos Não Maram Deuses” (05), em que é descrito o poder eréctil do carinho feito nas cicatrizes de alguém. E, na mesma letra, ele direciona uma autocrítica aos seus admiradores: “gostar da cultura não te faz preto/ ‘cê ter dinheiro não te torna branco”. Repte-se: este não é um disco condescendente!
A faixa 06 do álbum, “O Sol Mais Quente”, quiçá a melhor do disco, possui uma sonoridade mais dançante, porém a sua letra é implacável desde a abertura: começa dizendo que “o sol mais quente deixa tudo claro, mas eu continuo escuro” e, mais à frente, apregoa: “CoronaVírus me lembra a escravidão/ Brancos de fora vindo e fodendo com tudo”. Dois minutos e quinze segundos de duração, apenas. Tempo mais que suficiente para constranger seus opositores culturais de forma implacável!
Depois do interlúdio quase relaxante que é “Dedo no Cu e Gritaria” (07), a despeito do título mui chamativo e das conclamações rancorosas tendenciosamente demoníacas, segue-se “Tropa do Babu” (08), que enumera várias influências negras do cantor, a fim de valorizar a sua adesão à torcida do ator Babu Santana. Este é um participante negro do ‘reality show’ da TV Globo “Big Brother Brasil 20” que, invocando motes anti-racistas e ofensas advindas de outros participantes (aproveitados musicalmente através de gravação das falas do artista), tornou-se um dos favoritos a receber o prêmio máximo do programa, um milhão e meio de Reais. São faixas mais brandas, mas não desprovidas de interesse militante.
Para finalizar o álbum, um falso alívio cômico: “Amo Cardi B. e Odeio o Bozo” (09) padece da mesma difusão chistosa que a canção mais famosa do autor, “Te Amo, Disgraça”, mas toca em feridas muito sérias, que afligem em particular a comunidade negra e pobre. Neste caso, o alvo discursivo é a negação ao direito de alguns trabalhadores de poderem ficar em quarentena nas suas casas. Repudiando a decisão estapafúrdia do presidente Bolsonaro em incitar as atividades normais do comércio em meio à pandemia, o cantor apresenta como argumentação musical os depoimentos de companheiros seus que, caso adoecessem, seriam ainda mais desprivilegiados por não possuírem planos de saúde. Em dado momento, o eu-lírico desamparado idealiza uma solução religiosa: “pensando em engravidar Deus/ Pra ver se Ele cria um mundo mais igualitário”. Conforme ele zomba na mesma letra, “a quarentena é ‘pop’”. Mas engendrou um impressionante disco contestatório!