Na célebre novela “Cândido, ou o Otimismo”, publicada em 1759 por François-Marie Arouet, mais conhecido como Voltaire [1694–1778], o personagem Dr. Pangloss costumava repetir, de maneira tão excessiva que soava paródica, que “vivemos no melhor dos mundos possíveis”. Não importava o que acontecesse ao protagonista, ele insistia em defender a sua lógica leibniziana, de “máxima realidade de todos os fatos”, a fim de validar o otimismo ironizado no título da obra. Na abertura do longa-metragem “Terremoto em Lisboa” (2024, de Rita Nunes) — antes conhecido como “O Melhor dos Mundos”, justamente —, um laudo similar serve de epígrafe, configurando-se numa espécie de “moral da história”. Eis o que torna este filme tão interessante, na sua conversão de um mote de ficção científica em análise existencial sobre o cotidiano da personagem principal…
Tomando-se como ponto de partida referencial um terremoto que destruiu Lisboa, em 1755, o roteiro desta obra — escrito pela própria diretora, em comunhão com o brasileiro João Cândido Zacharias – apresenta-nos a Marta (Sara Barros Leitão), uma professora universitária que é também pesquisadora numa equipe de sismologia. Estamos em 2027, e ela evita conversar com seus alunos fora do ambiente acadêmico, preservando um distanciamento estrito entre a sua vida pessoal e a sua vida profissional. Porém, ela envolve-se romanticamente com um colega de equipe, Miguel (Miguel Nunes), que luta para driblar o rigor excludente de sua amante, que não permite sequer que ele traga a sua escova de dentes para a casa dela. Marta não deseja viver com mais ninguém, exceto com a sua cadela Onda!
Em mais de uma situação, percebemos Marta desvencilhando-se dos telefonemas de sua mãe, que tenta aproximá-la de sua irmã Teresa (Inês Vaz), alegando que ambas são de difícil convivência. Viciada em trabalho, Marta eventualmente visita as supracitadas familiares, mas passa pouco tempo entre elas: sempre há algo urgente a observar, em sua constatação de que “sabemos mais sobre a face oculta da Lua que sobre o fundo do oceano”. Junto a seus companheiros, Marta esforça-se para convencer um secretário do Estado Português (Nuno Pinheiro) de que alguns cabos submarinos precisam ser substituídos, visto que eles são essenciais para a comunicação cibernética e podem estar danificados. É quando se percebe a iminência do terremoto titular…
Com duração inferior a uma hora e quinze minutos, “Terremoto em Lisboa” flerta com típicos exemplares hollywoodianos de cinema-catástrofe, quando a antecipação do cataclisma – possivelmente, de magnitude 9 na escala Richter — provoca uma debandada caótica da capital lusitana, em que saques ocorrem em meio à fuga. Porém, diferentemente destes filmes, a obra ora analisada opta por dedicar parte considerável de sua metragem às discussões deontológicas, a um debate sobre ética científica: o que se deve fazer quando é descoberto algo potencialmente destrutivo, que causará pânico imediato se anunciado? Marta e seus colegas divergem inicialmente, visto que cada um deles faz ponderações distintas acerca de como as pessoas reagirão ao anúncio da tragédia prestes a assolar Lisboa, mais uma vez, depois de quase cinco séculos.
No afã por justificar a epígrafe do filme, Marta é confrontada com eventos que lhe obrigam a repensar se ela, de fato, vive no “melhor dos mundos”: enquanto passeia com Onda, ela constata a migração súbita de inúmeros pássaros e a aparição de vermes num parque botânico. Sente que está efetivamente apaixonada por Miguel, mas não ousa permitir que ele ocupe um espaço afetivo já devidamente maculado pelos conflitos entre ela e a sua mãe. Numa seqüência deveras peculiar, quando Marta aceita ser a porta-voz do anúncio do terremoto, num programa televisivo, ela é obrigada a maquiar-se e ser penteada por uma funcionária da emissora, antes de ser entrevistada. É um dos aspectos que o filme insiste em chamar a atenção, confrontando evidências científicas com a espetacularização da realidade: a trama passa-se em um ano vindouro, mas lida com problemas que já enfrentamos hodiernamente, há algum tempo. Por estar ciente de que o lugar onde vive pode ser destruído, Marta esforça-se para reatar vínculos emocionais desgastados por seu modo austero de tratar as pessoas. É um filme que nos conduz, inteligentemente, a repensar tudo isso, enquanto, obviamente, instaura a curiosidade acerca do evento titular: será que o terremoto efetivamente acontecerá? Outros abalos se acumulam antes disso. Recomendamos a audiência ao filme, portanto.
Wesley Pereira de Castro.
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