Alguns autores destacam uma nova modalidade do saber (sabendo-se de toda a dificuldade sociológica na sua caracterização), naquilo que designam por “saber disciplinar” (RODRIGUES, 2011, p. 87), isto quando consideramos epistemologicamente o conceito de modernidade, enquanto perspetiva humana, que comporta um distanciamento -face aquilo que é o sentido da realidade experiencial.
Em concreto, para o “mundo” académico e da investigação, este novo saber contém em si mesmo um processo de racionalização e reflexão críticas, que o acaba distinguindo da mera sabedoria tradicional, acrítica; parte dela construída sob um edifício de testemunhos herdados do passado. Todos estes elementos importantes, não despiciendos certamente, mas que devem ser entendidos como um percurso de acumulação de experiências e vivências assentes em contatos humanos, em contextos comunitários, que vão construindo relações de afinidade; e, simultaneamente, passagens experienciais de vida em comum. Apesar de não poderem ser muitas das vezes destacados ou isolados, na construção dogmática do saber disciplinar, não devem ser, com este, confundidos ou no limite obnubilá-lo na sua essência.
Na realidade, a bem de ver, estaremos, porém, também, perante o confronto sociológico entre a procura de integração numa comunidade, sabendo-se da importância do Homem enquanto ser social. Mas, confrontados face à necessidade de este buscar a aquisição do saber disciplinar moderno, que resulta, como se aludiu, do questionamento, da indagação do que se passa, da aquisição de uma “disciplina”; que ao contrário da dimensão sociológica acrítica, não radica, nem depende, da experiência e/ou vivências tendo em vista a integração comunitária. Acresce, aliás, para compreender completamente o sentido desta “disciplina” moderna, torna-se relevante entender que o sentido disciplinar atribuído a este saber radica, não só, no sentido científico -que a mesma contém, em consequência da sua natureza reflexiva e crítica (própria do pensamento científico)-; como flui, também, do entendimento que desde os Gregos se atribui à ascese, enquanto prática humana, que visa o desenvolvimento espiritual afastado da vida mundana, fazendo- se, aqui, uma síntese entre estas duas dimensões.
Apresentados, então, os dois planos de análise e respetivo posicionamento disciplinar, avulta nesta nova “disciplina do saber” a figura do especialista. Sabendo-se, portanto, que esta “disciplina” não tem uma vocação particular, localizada num espaço controlado-que caracteriza a sabedoria tradicional; mas, pelo contrário, tem uma dimensão universal. Este, novo “ator” do saber disciplinar não circunscreve, pois, a sua ação às fronteiras locais e da comunidade a que pertence e desenvolve o seu saber em qualquer tempo e lugar, tendo como limite, apenas, as suas competências e sabedoria. Aliás, esta “disciplina do saber”, conduz ainda à autonomização da função de afirmação do pensar e do refletir, bem como, à forma simbólica de o transmitir e comunicar (isto, até, perante ao pragmatismo do saber empírico); pelo que: o dizer e o fazer competentes, acabam também por desempenhar funções distintas.
Segundo Rodrigues (2011), no plano de análise próxima daquela que acabamos de apresentar, enquanto para a sabedoria tradicional ao dizer é atribuída uma função pragmática explícita.
[Para o] “saber disciplinar moderno as regras pragmáticas que regulam a intervenção do especialista autonomizam-se em relação às regras do discurso competente, dando assim origem ao aparecimento de duas figuras distintas, a do cientista e a do técnico.”
(RODRIGUES, 2011, p.88)
Conclusão:
No quadro da dimensão moderna, que vimos apresentando, acaba-se constatando a existência de uma clara separação no domínio do discurso: do saber dizer em relação ao domínio da intervenção técnica, do saber fazer.
Temos assim, portanto, uma rutura com a inevitável autonomização destes domínios do saber, pelo que se acaba assistindo ao consequente processo de secularização ou de dessacralização próximo do fenómeno a que Max Weber deu o nome de “desencantamento”. Isto, porque, o Homem acaba descobrindo que o seu destino depende daquilo que faz e não de alguma transcendência que o conduz.
Nesta constatação, este domínio do saber envolve, portanto, um sentido de modernidade. Mais, à referida rutura sendo um processo de emancipação, face à tradição secular e aos desígnios de condicionamento coletivo impostos, contém também, em si, um libertar deste mesmo Homem, no sentido do seu Individualismo, na fuga da sua “menoridade”; no essencial, numa proximidade de autonomia racional apresentada por Kant no seu ideal de Iluminismo – “Sapere aude!”, a que se pode atribuir o conceito de ousar procurar o conhecimento.
BIBLIOGRAFIA
Rodrigues, A. D. (2011). O Paradigma Comunicacional. História e Teorias. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Foto de capa: domínio público, de Pexels por Pixabay