De saída, esclareço que utilizo a palavra “indiferença” não como uma não-ação nem uma ação imparcial, vazia, oca, um tanto faz. A indiferença é ação pensada e realizada. No caso das identidades, vimos que diante da existência incontestável do Outro, há um esforço hercúleo para não querer enxergá-lo, mesmo sendo a Diferença. Tem-se nesse processo uma feroz luta contra o seu reconhecimento porque o Outro está lá e aqui como a verdade incômoda que busco não enxergar.
Dito isso, vimos que antes mesmo da institucionalização da Comunidade dos Países da Língua Portuguesa (CPLP) em 1996 já existia uma demanda para que essa comunidade se envolvesse, por exemplo, com a luta pela independência da ex-colônia portuguesa na Ásia, Timor-Leste, da tirania da Indonésia. Havia uma belíssima e aguerrida resistência timorense e isso demandava dos países lusófonos e da CPLP manifestações concretas de apoio ao Timor-Leste.
Nos registros dos dois maiores jornais brasileiros, Folha de S. Paulo e O Globo, em 20 anos de existência dessa comunidade, percebemos quase todas as nações dessa comunidade expressaram algum tipo de solidariedade visível ao movimento de independência do Timor-Leste, à exceção do Brasil. O presidente Fernando Henrique silenciou, não expressou apoio aos timorenses, calando-se diante de denúncias de torturas e dos massacres contra a população promovidos pelo exército indonésio.
Essa indiferença brasileira diante das lutas do Timor-Leste esteva estampada em O Globo em 09 de julho de 1996, pouco antes da criação da CPLP, em uma pequena notícia em que o ex-presidente português, Mário Soares, criticou abertamente o governo brasileiro. Soares diz que “o Brasil não pode ignorar a invasão do Timor pela Indonésia” (O Globo, 09/07/1996, O Mundo, p.26). O ex-presidente de Portugal avaliou que o Brasil não poderia sobrepor interesses econômicos aos direitos humanos ao negociar com a Indonésia. “A Indonésia é uma ditadura. Ora, o Brasil é uma grande democracia moderna […] a sociedade civil brasileira tem que pressionar mais contra a invasão do Timor” (O Globo, 09/07/1996, O Mundo, p. 26).
As críticas de Mário Soares parecem que somente ecoaram no Brasil dois anos depois, quando O Globo, em sua edição de 18 de novembro de 1998 noticia a existência de um manifesto de intelectuais brasileiros em favor da independência do Timor-Leste e contra a indiferença do governo do Brasil. Muitas vozes da literatura, das artes, da música no Brasil cobravam uma posição mais ativa do país em favor da independência do Timor, mas sem muitos resultados práticos.
Verifica-se, com mais nitidez a indiferença brasileira diante dos países da CPLP na edição de 13 de abril de 1999 no jornal Folha de S.Paulo. Ele trouxe as viagens do presidente Fernando Henrique. O Brasil vivia um colapso econômico e estava mal avaliado no exterior. Assim, segundo a Folha, as visitas de FHC em alguns países serviriam para ele “revalorizar a sua Presidência”. Um dos lugares que Fernando Henrique tentou utilizar para esse objetivo foi Portugal, que sediava naquele ano uma conferência da CPLP. No encontro, fora do roteiro oficial, as lutas pela independência do Timor-Leste ganham corpo e atenção e acabaram tirando o foco das intenções estratégicas do presidente brasileiro em “revalorizar sua Presidência”.
A notícia sobre esse encontro da CPLP, o agendamento do caso Timor-Leste e a “fuga” do presidente brasileiro do tema revelam o tamanho da indiferença do Brasil. Clóvis Rossi, repórter da Folha que acompanhava as viagens do presidente FHC, conta que a “visita” de Fernando Henrique em Lisboa “seria mais de compadrio, dado ao relacionamento histórico entre os dois países, não fosse o Timor Leste” (Folha, 13/04/1999, p. 6). As lideranças dos movimentos de independência do Timor estavam naquela reunião da CPLP em Portugal e cobravam publicamente do Brasil uma manifestação de apoio, o que não aconteceu.
A Folha diz que a posição da diplomacia brasileira é de diálogo entre as partes, mas com tendência favorável à Indonésia, país com quem o Brasil mantinha “boas relações comerciais”. Na prática, o Timor-Leste não interessava ao presidente FHC porque não revalorizava a sua Presidência. Por isso, escreve o repórter que “não fosse pelo Timor, seria uma cúpula festiva, girando em torno dos festejos dos 500 anos do descobrimento do Brasil”.
Em resumo, nos primeiros 20 anos da CPLP, o Brasil além de tratar com profunda ausência a comunidade lusófona, como um Outro distante, também buscou, de forma ativa, ser indiferente quando foi chamado a atuar, como se pode observar no caso do Timor-Leste. Entretanto, como disse no início desse texto, essa indiferença é uma ação, um não querer enxergar o diferente, o incômodo. É uma ação parcial contra o Outro.
Na próxima semana, acrescentaremos aos processos de ausência e de indiferença brasileira para com essa comunidade lusófona que faz parte, a própria condição da diferença do Brasil em relação à CPLP.
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