“A incompreensão do presente nasce fatalmente da ignorância do passado. Mas não vale a pena esgotar-se para compreender o passado quando nada se sabe do presente” (p.100).
O texto que se segue é um exercício de compreensão elaborado através da análise do I capítulo da obra “Introdução à História” de Marc Bloch. Procurou-se entender de que forma o conhecimento histórico se alterou através do relacionamento entre o presente e o passado, e que consequências sucederam dessa relação para o trabalho do historiador do século XX.
No primeiro ponto, “A opção do historiador”, a necessidade de definir “História” é posta em causa. Estamos perante um capítulo que disseca as noções de uma disciplina e, como tal, tentar defini-la é uma preocupação legítima. Mas apesar de legítima preocupação o autor aborda a antiguidade e amplitude do conceito para demonstrar a improdutividade de perseguir definições sabendo que, independentemente do significado considerado autêntico num determinado momento, o seu sentido será sempre o da investigação. A própria etimologia da palavra assim o indica (p.84).
Alerta, contudo, que o historiador será sempre confrontado com a necessidade de circunscrever “o ponto particular de aplicação dos seus instrumentos” (p.86), e que essa será uma escolha inerente à acção. Isto é, apesar de não ser expectável que o investigador invista tempo a providenciar uma definição de História, é necessário que defina a História objecto do seu estudo.
Neste sentido, no ponto II, intitulado “A história e os homens”, Bloch, volta-se para uma definição da História “como ciência do passado” (p.86). Rapidamente desmistifica essa noção expondo dois argumentos, o primeiro é que a História não é a história de todo o passado (certamente não dos eventos geológicos, nem da evolução das espécies), e o segundo é que a História não é o estudo do passado mas sim uma forma de conhecimento do passado, e o conhecimento do passado modifica-se e transforma-se, pois a História produz-se a partir das “inquietações” do Presente, e o Presente acontece a cada passo.
Além disso, o passado não é directamente observável nem está sujeito a leis ou fórmulas matemáticas, ao contrário do que acontece nas ciências naturais, fazendo com que cada nova fonte estudada ou descoberta, ou cada nova linha de raciocínio, contribuam para a alteração do aspecto do conhecimento histórico. Efectivamente, a noção de “ciência do passado” justificou-se quando a História era somente uma sistematização cronológica do passado, sobretudo dos grandes acontecimentos políticos, e uma narrativa de acumulação cingida apenas ao critério da mudança, sem método.
O tópico é rematado pelo autor com a interrogação acerca da natureza da História: ciência ou arte (p.88)? Como retratá-la tendo em conta que a actividade humana na longa duração é uma amálgama de “fenómenos delicadíssimos” (p.88)? É de supor que esta delicadeza se reporta ao emaranhado de factores que subsidiaram os acontecimentos históricos e às problemáticas e contextos de cada um desses factores. Bloch esclarece que apesar de não ser uma ciência exacta, dada a natureza do objecto do seu trabalho, está igualmente subjugada ao rigor e a métodos de investigação científicos e comprometida em produzir um conhecimento racional. Mais do que fórmulas a História requer “tacto nas palavras” (p.89), sendo fundamental saber traduzir o passado, interpretá-lo e sugeri-lo.
No terceiro item do capítulo, “O tempo histórico”, Bloch sugere a designação “ciência dos homens no tempo” (p.89), colocando o ser humano como sujeito da narrativa e a duração como principal categoria do fenómeno humano estudado pela História. No tocante à categoria do tempo Bloch demonstra através de exemplos que qualquer campo científico tem o tempo como propriedade do seu trabalho e de forma convencionada aos seus propósitos. Na História, o tempo, tem dois atributos sendo uma medida que permite quantificar uma acção em dias, meses ou séculos, e sendo uma circunstância, pois determina/identifica o “lugar cronológico” (p.89) em que esta se desenvolve. Bloch refere que essa duração, quer na qualidade de medida quer na de circunstância, está sujeita a um grau de continuidade e a outro de mutabilidade, responsável pela antítese que coloca em causa a existência do historiador. Porquê uma antítese, uma vez que tempo pode ser contínuo, mas não obrigatoriamente linear? Possivelmente porque essa continuidade e mutabilidade se fabricam nos teares do tempo presente, no permanente desenrolar da actividade humana, contudo, para compreender o determinado antecedente histórico não basta considerar os resultados mais observáveis do imediato, é preciso interpretar e compreender o seu contexto como parte de um todo, como uma evolução de acontecimentos que culminaram nesse determinado momento (e que, certamente, tiveram repercurssões).
O quarto ponto, “O ídolo das origens”, reporta-se ao sentimento transversal a qualquer investigador. Nas palavras de Marc Bloch, a “obsessão das origens” (p.90). Contudo essa ambição deverá ser controlada e utilizada moderadamente, correndo o risco de imputar a eventos antecedentes a tremenda responsabilidade de justificar ou condenar o momento presente que se estuda, conforme fizeram os Positivistas. O Positivismo foi uma doutrina filosófica, política e sociológica assente na verificação científica exacta, por meio da observação dos fenómenos e através da utilização dos sentidos para validar teorias. Defende que o conhecimento científico é único verdadeiro. Esta corrente, aplicada à História, atribuiu aos fenómenos e eventos testemunhados pelas fontes uma natureza factual, tornando-a objectiva. Deste modo, as busca pelas “origens” torna-se o mote do trabalho na História, uma vez que os “factos” estão equiparados à comprovação empírica e a sua incessante acumulação é o labor e a prova da compreensão histórica, o que dispensa a acção do historiador. Apesar de Bloch não referir o positivismo directamente, a obtenção da totalidade dos “factos”, onde se incluiu a busca pelas origens, foi uma manifestação desta corrente de pensadores.
Prossegue esclarecendo esta vertente como sendo desadequada à História sendo esta mutável e subjectiva, quer no conceito quer no conteúdo, não se podendo confundir o propósito de filiação das origens com a providência de uma “explicação” ou comprovativo empírico (p.93). Em boa verdade, as origens, podem ser várias e variadas, sempre sujeitas a interpretações subjectivas, sendo um risco assumir uma como verdadeira. “Em suma: nunca um momento histórico se explica plenamente fora do estudo do seu momento. (…) Já um provérbio árabe dissera: «Os homens parecem-se mais com o seu tempo que com os seus pais». Foi por se ter olvidado esta sabedoria oriental que se desacreditou às vezes o estudo do passado.” (p.94). O provérbio que Bloch utilizou explica que as origens (os pais) são parte da contextualização de um objecto de estudo, mas não são a razão pelo seu desfecho (a sua época), fazendo da história uma “colecção de experiências e não de precedentes” (p.46).
“Passado e presente” é a quinta e última parcela do capítulo. Aqui, em oposição à obsessão da acumulação do saber histórico, é assinalada uma outra linha de pensamento que favorece a noção de que “somente o próximo explica o próximo” (p.47), isto é, que os eventos contemporâneos ao objecto de estudo são demasiado longínquos dos do seu passado para que estes estejam aptos a contribuir para a sua contextualização. Através de exemplos e da etimologia da palavra “Presente”, Bloch prova a sua efemeridade, dependência do passado para advir e insignificante inteligibilidade. Explica que a estrita justificação de uma sociedade por eventos contemporâneos a si é um acto profundamente ignorante e, que a ser possível, faria da sociedade um autómato da tradição. Só é possível dar um passo em frente quando existe um impulso dado atrás, uma amplitude necessária à compreensão das relações, à formação de significados, à aprendizagem por comparação e ao exercício da afectação. Um conjunto de práticas radicadas em conhecimentos do passado mais ou menos longínquo. Bloch demonstra o erro, categoricamente: “O erro (…) para o destruir, basta formulá-lo. Representa-se a corrente da evolução humana como facto de uma sequência de breves e profundos estremeções, onde cada uma não duraria mais que o espaço de algumas vidas.” (p.99).
Após esta breve análise ao capítulo é chegada a hora de simplificar. Respondendo à questão do parágrafo inicial, Marc Bloch demonstrou que o conhecimento histórico produz-se tendo por sujeito da narrativa histórica o ser humano e a duração da sua actividade como predicado, retirando a exclusividade cronológica aos grandes acontecimentos e grandes personalidades políticas. Toda a actividade humana, bem como os seus factores, introduzem-se na investigação. E, uma vez que “o historiador não pensa apenas o humano” e que a “atmosfera em que o seu pensamento respira naturalmente é a categoria da duração” (p.89), Bloch desconstrói as noções historiográficas obsoletas que classificam o conhecimento histórico como factual e imutável, como “ciência do passado”, alertando para o facto de que o tempo histórico é contínuo e dinâmico. Isto é, considera-se que o que se conhece da acção humana na longa duração, em função das fontes ou das linhas de pensamento em vigor, estão sujeitas a transformações e novas interpretações consoante o desenvolvimento do trabalho dos investigadores e da disciplina da História. Por fim, é constatado que, por tudo isto, é importante que o historiador veja o passado como uma âncora do presente, e o presente como uma ferramenta para trabalhar a investigação acerca do passado, aliando-se a um saber pluridisciplinar com o intuito de produzir um saber histórico racional e científico.
Bibliografia
Bloch, M., Bloch, É., Le Goff, J. (1997). A História, os Homens e o Tempo. In M. Castro
(Ed.), Introdução à História (pp.85-102). Mem Martins: Publicações
Europa-América, Lda.



