Em 2018, o cinema moçambicano passou a ser amplamente noticiado: pela primeira vez, um filme deste país foi submetido à candidatura para uma possível vaga entre os indicados a Melhor Filmes Estrangeiro do prêmio Oscar. Infelizmente, o filme em pauta não foi selecionado, mas, mesmo assim, isto garantiu um incremento internacional na audiência do filme “Comboio de Sal e Açúcar” (2016), dirigido pelo brasileiro, radicado há várias décadas em Moçambique, Licínio Azevedo.
Tendo chegado ao país africano em 1975, ano de sua independência oficial, Licínio Azevedo – que também é escritor – dedicou-se inicialmente à realização de documentários e é considerado por alguns “o pai do cinema moçambicano”, não obstante, curiosamente, o principal cineasta daquele país, Ruy Guerra, ter se estabelecido no Brasil, onde ainda está em atividade.
Apesar de possuir uma ampla filmografia documental, com foco nas contradições políticas dos processos revolucionários, foi com “Virgem Margarida” (2012) que o diretor chamou a atenção dos críticos de todo o mundo. Na trama, acompanhamos a personagem-título, aprisionada por engano junto a várias prostitutas, num processo de reeducação sexual implantado pelo então governo socialista do militar Samora Machel, tema que já havia inspirado ao diretor o documentário “A Última Prostituta” (1999).
No longa-metragem mais recente, o diretor volta-se para um episódio da guerra civil que instalou-se no país entre 1977, apenas dois anos após a independência, e 1992, quando o país deixou de ser socialista. Lançado no Brasil apenas em junho de 2018, “Comboio de Sal e Açúcar” é passado em 1988, quando várias pessoas aventuravam-se numa arriscadíssima viagem de trem, a fim de conseguirem migrar de cidades e/ou conseguirem trocar sal por açúcar, mercadoria em falta em muitas regiões. Na trama, baseada em um livro homônimo do diretor, destaca-se a enfermeira Rosa (Melanie de Vales Rafael), uma enfermeira recém-formada que testemunha as atrocidades cometidas por soldados de ambos os lados do combate. De um lado, tiroteios, saques e explosões; do outro, estupros e espancamentos em nome de uma proteção ditatorial. No meio, a opressão da população.
Conduzido de maneira um tanto novelesca, em que várias situações dramáticas se acavalam numa curta direção – característica também detectada no citado “Virgem Margarida” – o roteiro de “Comboio de Sal e Açúcar” permite a introdução de um interesse romântico, surgido de uma situação defensiva, entre Rosa e o tenente Taiar (Matamba Joaquim), que reluta em ceder aos abusos de poder de seus companheiros de delegação, sobretudo o autoritário comandante Sete Maneiras (António Nipita) e o agressivo Salomão (Thiago Justino), que chega a comandar o espancamento do marido de uma jovem por quem se interessou. Tal qual acontece num típico faroeste hollywoodiano – a influência mais imediata talvez seja “No Tempo das Diligências” (1939), de John Ford – pequenos dramas vão se sucedendo, em meio aos fatos político-históricos e românticos: uma mulher dá a luz em pleno comboio, defendendo a necessidade de a criança nascer, onde quer que seja; o maquinista externa um fanatismo cristão em divergência com as crenças tribais de outras parcelas da população; sacos de sal dos passageiros passam a ser confiscados e utilizados pelos próprios soldados que deveriam proteger a carga… Até que surge a milícia inimiga, disparando impiedosamente contra o trem. E os passageiros questionam: haverá algum lado essencialmente bom em meio à guerra?
Com duração de apenas 93 minutos, Licínio Azevedo evita o triunfalismo em sua produção: não há torcida para que um determinado lado vença, não há esperança de resolução para o conflito que dizimou tanta gente, cerca de um milhão de pessoas ao longo de toda a guerra civil, seja pelos combates propriamente ditos, seja por causa da fome decorrente. Entretanto, há um depósito de confiança moral na personagem Rosa, que põe em prática aquilo que nos ensinou Primo Levi (1919-1987), no testemunho literário de sobrevivência que atende pelo nome de “É Isto um Homem?”: “cedo ou tarde, na vida, cada um de nós se dá conta de que a felicidade completa é irrealizável; poucos, porém, atentam para a reflexão oposta: que também é irrealizável a infelicidade completa”. É exatamente assim que se desenvolve a envergadura conscienciosa nos filmes deste diretor, cujos filmes são curtos, abundantes de personagens e com finais em aberto. Pois cabe a nós, espectadores, completar o ciclo. No cinema, na vida e na política, é assim!
Em termos técnicos, o filme apresenta algumas precariedades, obviamente. Afinal, a exiguidade de tradição cinematográfica em Moçambique justifica alguns atropelos de montagem ou elipses narrativas que dificultam um pouco da apreensão contextual para quem não conhece a fundo os eventos conturbados da beligerante história do país. Mas vale a pena ser elogiada a caprichada direção de arte, que impinge o aspecto de superprodução a um filme que, no fundo, não deixa de ser modesto: o que ele perquire, sobretudo, é a emoção, mas não num viés melodramático, mas sim reflexivo, em pleno curso dos fatos. Por isso, não há lamentos demorados no filme, apesar das tragédias e atrocidades surgirem com freqüência: o trem segue em frente, em meio aos percalços induzidos do trajeto… Frase final do filme: “a luta continua”!