“A mera decapitação não fora suficiente. Seguiram-se mais golpes, tirando o escalpe a Atena, arrancando o elmo da cabeça da deusa, partindo-o em pedaços. Seguiram-se mais golpes. A estátua tombou do seu pedestal, depois os braços e os ombros foram cortados. O corpo foi deixado sobre a terra, de barriga para baixo; o altar próximo foi arrancado logo acima da base.” – A Chegada das Trevas (2018), p.18.
A natureza bélica e simultaneamente diplomática de Roma, fez da cidade um intenso polo de difusão e absorção cultural e religiosa, pelo o qual disputavam diversas etnias e para o qual concorriam vários interesses. De entre todas as influências que recebeu ao longo da sua existência e que não contribuíram para o seu crescimento e expansão até ali observados, foi o cristianismo.
Tratava-se de uma religião oriental, com origem judaica e de índole monoteísta, promotora da fé num só Deus, percepcionado como único e verdadeiro, que intervinha e orientava os seus crentes, lhes oferecia conforto e companhia, e proporcionava uma existência eterna para além da morte. A condição para usufruir destas dádivas era não questionar e contrariar os seus métodos e vontades, incorrendo-se no risco de transgredir regras e contrair dívidas de bom comportamento, os pecados, que por sua vez exigiam expiação e castigo, ou até mesmo a condenação à morte.
Foi o que esteve na base da institucionalização da ignorância científica e cultural, e seu consequente retrocesso, durante séculos a fio.
O Cristianismo foi primeiramente difundido no tempo do imperador Tibério (42 a.C. – 37 d.C.) e encontrou desde cedo repúdio e repressão legal por parte dos imperadores, conforme aconteceu com Nero (37 d.C.-68 d.C.) e Domiciano (51 d.C.-96 d.C.), segundo noticiaram Tácito, um senador romano, e Suetónio, um escritor.
As acusações feitas aos cristãos recaíam sobre a sua recusa em prestar culto aos deuses de Roma e ao imperador, sobre a causa de serem ateístas (face ao politeísmo romano) e as superstições à margem da lei.
Até serem reconhecidos como uma religião oficial em 312 d.C., os cristãos atravessaram períodos intercalados de paz relativa, conforme sucedeu com Marco Aurélio (161-180 d.C.), e de perseguições, de que são exemplo as empreendidas por Décio (249-251 d.C.), Valeriano (253-260 d.C.) e Diocleciano (284-305 d.C.).
As fontes para o estudo da cristianização do império constam de críticas e apologias.
Para o primeiro caso salientam-se Celso e Porfírio, que na sua visão designaram o cristianismo como uma religião de gente pobre e inculta, tendo por figura exemplar uma personagem apagada e sem valor, Jesus. Quanto às escrituras não lhes atribuem qualquer crédito literário ou científico, dado que se tratavam de produções “recentes” e dada a quantidade de contradições nelas presentes. Sobre estas últimas salientam-se aquelas apontadas por Celso, onde coloca em causa a ambiguidade de valores entre o velho e o novo testamento. Como podia esse Deus enviar um mensageiro para contradizer a sua própria palavra?
Também atacaram a ideia de criação do universo e da sua caducidade, a ideia de ressurreição dos mortos e a de reencarnação como forma de redenção. Quanto ao primeiro argumento, já nesta época corria em Roma a teoria epicurista que oferecia uma imagem diferente sobre o surgimento do universo como fruto de uma colisão de átomos, fazendo dos mitos da criação, explicações da realidade sem qualquer rigor intelectual e profundamente redundantes, aos quais todas as civilizações precedentes recorreram, do Egipto à Mesopotâmia, perante a falta de uma melhor explicação. Além disso, o mito da criação do Génesis encontrava paralelos literários em várias obras que o antecederam. Leia-se a obra “Metamorfoses” de Ovídio, por exemplo, ou os mitos cosmogónicos do Egipto e da Mesopotâmia, onde foram lançadas as bases das ideias e a cadência de ritmo deste tipo de literatura.
Quanto às questões da ressurreição e reencarnação, os autores indicaram a impossibilidade de tal acontecimento por motivos ainda hoje óbvios, bem como a ausência de testemunhos credíveis no momento em que tal acontecimento sucedeu ao corpo de Jesus.
A ideia de que Jesus veio para salvar os pecadores não foi ignorada por Celso, que questionou a razão de não ter vindo pelos que não pecaram, por aqueles que eram de facto virtuosos. Que mal haveria em não haver pecado?
Outros autores clássicos da Roma à Grécia, criticaram o cristianismo com sólida contra-argumentação, dos quais se destacam Plínio (o Velho), Lucrécio, Plutarco, Demócrito, Galeno, Luciano, Ário entre muitos outros cujas obras foram quase extintas pelos cristãos ou adulteradas.
Sobre a relação entre o cristianismo e a decadência do império recomenda-se a leitura da obra “A chegada das Trevas”, de Catherine Nixey.
A contrabalançar estas críticas mordazes encontra-se a produção literária apologética do cristianismo que denuncia a injustiça dos ataques sofridos e negando as acusações de idolatria, de comportamento imoral e de conspiração contra o Estado. Inclusivamente o imperador Justino (518-527 d.C.) estabeleceu correspondências de pensamento entre o cristianismo e o platonismo.
O cristianismo encontrou adoradores entre os aristocratas, mas manifestou-se sobretudo nas classes de condição inferior, que eram aquelas que viviam nas piores condições, com menos garantias e direitos, e as primeiras a sofrerem as consequências de tempos menos férteis e abundantes. O cristianismo vinga numa época de profunda incerteza em relação ao futuro dada a instabilidade económica e social que se fazia sentir. A necessidade de uma religião capaz de controlar e apaziguar os medos e as dúvidas, através da determinação do comportamento a ter neste mundo para garantir a existência que viria a ser a verdadeira no além-túmulo, foi o que determinou o seu sucesso.
CENTENO, Rui Manuel Sobral (coord.) – Civilizações Clássicas II. Roma. Documento pdf. Manual de História das Civilizações Clássicas. 1º ciclo de Estudos em História. Acessível na Plataforma de E-Learning da Universidade Aberta.
NIXEY, C. (2018) – A chegada das Trevas. Lisboa: Desassossego (Edições Saída de Emergência).
CHADWICK, H. (1980) – Origen Contra Celsum. Cambridge: Cambridge university press.
IMAGEM: Cabeça de Afrodite da Ágora de Atenas – Museu Nacional de Arqueologia de Atenas.
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