

Nem toda crítica precisa ferir — e nem todo silêncio é omissão. Neste ensaio, duas figuras simbólicas se revelam: a alfineteira, que provoca o pensamento com incômodo, e a almofada, que acolhe a tensão antes da ação. Entre o impacto e a contenção, descobrimos o espaço onde a transformação verdadeira acontece. Um convite à escuta crítica, ao gesto ético e à força da delicadeza. Porque toda agulha precisa de um lugar onde descansar antes de furar.
A Alfineteira e a Almofada
Entre o Incômodo que Transforma e o Acolhimento que Sustenta
“Quem não é capaz de se incomodar não é capaz de se transformar.”
Por Élvio Camacho, Universidade da Madeira / CITUR, ISAL
Sempre conheci dois tipos muito específicos de pessoas. Uma delas não se anuncia com suavidade. Não se contenta com o conforto do que está dado. Prefere a tensão ao consenso, o incômodo à neutralidade. É aquela que crava palavras como quem finca alfinetes — pequenas agulhadas que provocam irritação, sim, mas também reflexão e movimento. A essa figura dou o nome de alfineteira. A outra parece o seu oposto: acolhe em silêncio, escuta com paciência, segura o que fere sem devolver na mesma moeda. É onde o incômodo repousa antes de se expressar. É o corpo simbólico onde a tensão se organiza e amadurece. A essa, chamo de almofada. Essas duas presenças — tão diferentes, e ao mesmo tempo, tão complementares — convivem em todo grupo, em toda família, em toda organização. São forças que se equilibram: a que desafia, e a que contém. A que fura, e a que sustenta.
Na filosofia, a alfineteira encontra seu arquétipo em Sócrates. Ele comparava-se a um “tábano” sobre o cavalo lento que era Atenas: alguém cuja missão era picar os cidadãos para que pensassem por si. Sua maiêutica era uma arte da pergunta incômoda, da dúvida que abre, da crítica que liberta. É dele a frase que ainda ecoa, desafiando o conformismo dos séculos: “A vida não examinada não vale a pena ser vivida” (Platão, Apologia de Sócrates). Como os grandes mestres, a alfineteira filosófica não ataca por vaidade. Fura para libertar. Não oferece respostas fáceis, mas cultiva inquietações férteis.
No universo da gestão, as alfineteiras são muitas vezes confundidas com opositores ou sabotadores. São aquelas que dizem “isso não vai funcionar” quando todos já aplaudem a proposta. Que perguntam “por quê?” uma vez além do que seria conveniente. Em ambientes autoritários, são silenciadas. Em ambientes inteligentes, são escutadas com atenção. Peter Drucker, com sua lucidez empresarial, advertia: “Onde todos pensam igual, ninguém está pensando muito.” (Drucker, 2001). Essas figuras evitam desastres, expõem riscos, mantêm viva a capacidade crítica das instituições. São, ainda que incômodas, agentes de qualidade e transformação. Mas mesmo a alfinete mais bem-intencionada pode errar o alvo — e aí, a presença da almofada se torna ainda mais necessária.
Por mais necessário que seja o gesto que fura, ele exige cuidado. A crítica constante pode degenerar em ruído. O sarcasmo pode substituir o discernimento. A palavra dura pode ferir mais do que abrir. Nietzsche alertava: “Quem luta com monstros deve velar para que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro.” (Nietzsche, 2007, §146). É nesse ponto que entra a figura da almofada — não como uma antítese passiva, mas como uma inteligência que antecede o corte. Uma força que amortece para que a crítica encontre o seu tempo, o seu tom e a sua direção. Ser almofada é uma forma rara de contenção ativa. É segurar uma tensão sem neutralizá-la. É oferecer escuta ao que ainda não virou argumento. É permitir que a palavra cortante encontre o seu melhor momento. Como sugeria Ortega y Gasset em suas meditações sobre a convivência: a força mais elevada muitas vezes se manifesta como delicadeza.
Na psicologia das relações, a almofada aparece como quem sustenta a dor do outro sem devolvê-la. Alguém que escuta sem julgar. Que filtra antes de reagir. Que sabe que nem toda tensão precisa explodir imediatamente. Algumas precisam apenas de um lugar onde pousar. E isso vale tanto na vida íntima quanto na vida institucional. Pense naquele aluno que questiona a nota da prova — não por arrogância, mas por ter realmente estudado e acreditado que merecia mais. O professor tem escolhas ali: pode reagir com rigidez e desconfiança, anulando o gesto crítico, ou pode ser almofada — escutar, dialogar, talvez rever. Esse simples ato de contenção pode transformar o aluno de opositor a parceiro no processo de aprendizagem. Ou pense numa nova colaboradora que entra na empresa e questiona por que um processo exige tantas etapas para ser aprovado. Ela não está apenas reclamando da burocracia — ela está, com coragem, pondo em causa a própria função que hoje apenas executa o processo, mas que poderia liderá-lo estrategicamente. A organização pode ver nela uma ameaça. Ou pode ser almofada: acolher a crítica e redirecionar a energia daquela função para um papel mais analítico, mais contributivo. O que poderia ser ruído vira, nesse gesto, realinhamento. Essas situações mostram como a escuta, a espera e a mediação são forças em si. Contenção não é ausência de ação — é preparação para que a ação seja mais justa, mais consciente, mais fecunda.
Eis o que ambas figuras nos ensinam: sem incômodo, não há crescimento. Mas sem contenção, não há direção. A agulha sem almofada fura antes da hora. A almofada sem alfinetes acumula tensão que nunca se transforma. Nassim Taleb, ao falar da antifragilidade, reforça essa ideia: “Algumas coisas se beneficiam do choque; prosperam e crescem quando expostas à volatilidade, ao acaso, à desordem e ao estresse.” (Taleb, 2012). O crescimento, portanto, não acontece apesar da fricção — mas por causa dela. E também não acontece só pela fricção, mas pela maneira como ela é acolhida.
A alfineteira e a almofada são mais do que tipos humanos. São papéis simbólicos no tecido social. Ambas operam onde há vida, conflito e possibilidade. Uma aponta o que precisa mudar. A outra garante que a mudança não destrua tudo no caminho. Juntas, são a base de qualquer cultura que se pretenda crítica e sustentável. Sem a alfineteira, tudo tende à complacência. Sem a almofada, tudo tende à ruptura.
Num mundo em que se espera respostas rápidas, gestos duros e posturas assertivas, a lição dessas figuras é profunda: a transformação verdadeira não se faz apenas com impacto, mas também com preparação. Não apenas com urgência, mas com escuta. Não apenas com coragem, mas com cuidado. Se hoje somos mais lúcidos, mais críticos, mais capazes de sustentar o que pensamos — talvez seja porque alguém, em algum momento, nos espetou com um alfinete… e porque outro alguém, antes disso, foi a almofada onde essa agulha descansou.
Referências (formato APA 7.ª edição)
Drucker, P. F. (2001). The Essential Drucker: The Best of Sixty Years of Peter Drucker’s Essential Writings on Management. HarperBusiness.
Nietzsche, F. (2007). Além do bem e do mal (Trad. Paulo César de Souza). Companhia das Letras. (Original publicado em 1886)
Platão. (2001). Apologia de Sócrates (Trad. Maria Helena da Rocha Pereira). Fundação Calouste Gulbenkian.
Taleb, N. N. (2012). Antifragile: Things That Gain from Disorder. Random House.
Ortega y Gasset, J. (2021). Meditações do Quixote. Lisboa: Edições 70. [atribuição interpretativa baseada na filosofia do autor]