Em Os Buddenbrook, decadência duma família[1], Thomas Mann cria a metáfora “sentar nas pedras” para descrever a espera conformada daqueles que conhecem seu lugar no mundo. Utilizo essa metáfora para representar a espera de todos aqueles que, no fundo, sabem que nunca terão vez, que nunca subirão um degrau na escadaria social. Sentar nas pedras é esperar resignadamente, sem esperança. É uma espera cônscia não apenas do lugar social, mas dos direitos reais – não dos direitos teóricos, inscritos nas leis e constituições – reservados aos que sustentam a pirâmide social. São milhões os que se retiram para as pedras enquanto esperam por migalhas.
No Brasil, esses milhões, despercebidos dos cadastros e controles governamentais, são homens e mulheres que, até o surgimento da pandemia do Coronavírus, sustentavam suas famílias nas franjas do sistema: catando latinhas e outros dejetos, vendendo doces e bugigangas nos sinais, fazendo pequenos biscates, sobrevivendo, literalmente, de malabarismos. Esses que a epidemia fez alcunhar de invisíveis – é assim que a imprensa tem tratado as pessoas que não conseguem acesso ao cadastro do governo federal para recebimento de um benefício emergencial no valor de R$ 600,00 (seiscentos reais) ou U$ 108,00 (cento e oito dólares) – são os excluídos de quem falam os cientistas sociais há décadas. Não são documentados e não possuem um Smartphone por meio do qual possam acessar o aplicativo do banco oficial responsável por distribuir-lhes os recursos emergenciais. Essa é sua vida, esperar nas pedras.
Sem que se mudem as estruturas socioeconômicas que produzem e mantêm viva a absurda desigualdade social brasileira e sem que haja uma vontade política generalizada de inserção social dos excluídos, essas pessoas invariavelmente seguirão esperando nas pedras. E esperarão não apenas pelo auxílio emergencial do governo, em filas quilométricas, junto a tantos outros que sofrem a penúria trazida pelo distanciamento social, mal necessário ao combate à pandemia. Esperarão, como sempre, pelos direitos que só lhes são atribuídos no papel: habitação, educação, saúde, segurança, dignidade!
Há escolas para seus filhos, é bem verdade, mas uma escola que se encontra a anos-luz da escola reservada às crianças bem nascidas. Há postos de saúde e hospitais públicos a seu dispor, mas daquele jeito, lotados e sucateados. Muitos, na década passada, conseguiram o direito à casa própria por meio de um programa governamental de financiamento de moradia[2], mas outros, milhões, seguem à sombra das grandes cidades, vivendo em barracos improvisados, sob marquises, em ocupações clandestinas. A violência cotidiana e a insegurança são suas vizinhas de porta.
No Brasil, a pandemia descortinou números há muito conhecidos pelas Ciências Sociais: 11 milhões de pessoas invisíveis para o Estado, 14 milhões de famílias dependentes do programa Bolsa Família[3], 12 milhões de desempregados, 5 milhões de pessoas que já desistiram de procurar emprego. Mais de 20% da população brasileira encontra-se, hoje, à margem do mercado, seja de trabalho, seja de consumo. E não há no horizonte o que lhes diga que essa situação irá mudar.
O governo do Presidente Jair Bolsonaro, ultraliberal, avesso ao estado de bem-estar social, culpa a crise econômica herdada de gestões anteriores e o excesso de gasto público por esses números alarmantes. A solução? Desestatizar para que a economia possa girar.
O Brasil já sabe onde vai dar essa estrada. E não será na redução da desigualdade social, da fome, da miséria, da exclusão. A redução do Estado no contexto socioeconômico brasileiro corresponde à redução da inclusão social, dos direitos e da dignidade humana. Liberalizar a economia brasileira resultará em que as pedras se lotem ainda mais de invisíveis à espera de um futuro que, eles próprios sabem, nunca virá.
___________________________
[1] Romance épico editado em 1901.
[2] Minha Casa, Minha Vida, programa criado por meio da Medida Provisória nº 459, de 25 de março de 2009, assinada pelo então Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, e convertida na Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009.
[3] O programa Bolsa Família, criado pela Lei nº 10.836, de 9 de janeiro de 2004, assinada pelo então Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, transfere renda a famílias que se encontram em situação de pobreza – que têm renda per capita mensal de até R$ 187,00 (cento e oitenta e sete reais) ou U$ 32,00 (trinta e dois dólares) – e de extrema pobreza – cuja renda per capita mensal não ultrapasse R$ 89,00 (oitenta e nove reais) ou U$ 16,00 (dezesseis dólares). O programa conta com diferentes tipos de benefícios que variam de R$ 89,00 (oitenta e nove reais) ou U$ 16,00 (dezesseis dólares) a R$ 205,00 (duzentos e cinco reais) ou U$ 37,00 (trinta e sete dólares) se acumulado por até cinco membros de uma mesma família.



