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Religião e Ciência

Religião e Ciência

Serão estas duas temáticas assim tão distantes? Creio que não.

Sou investigadora e sou cristã. E estas duas realidades não poderiam viver em mim mais pacificamente. Nunca as vi como áreas que competem. É muito curioso ver o quão difícil é, para outros cientistas, perceberem isto. E com (alguma) razão. Associamos os cientistas às descobertas. Cientistas são curiosos natos. São observadores e cépticos incorrigíveis. E têm um desejo obstinado de perceber o mundo que os rodeia. Podem ser galáxias a anos-luz da Via Láctea, podem ser os planetas no ‘nosso’ Sistema Solar. Podem ser os estudos comportamentais ou fluxos migratórios de animais. Ou ainda, moléculas integradas num processo celular.

O que nos diz a História

Há muito que a História relaciona estes dois domínios.

Recuemos à Antiguidade. A procura pelo esclarecimento dos processos naturais era feita sob a forma de cultos a divindades e recurso à mitologia. São exemplos a civilização egípcia e grega. Filósofos como Platão e Aristóteles começaram a mudar esse paradigma e a usar a razão como base para a aquisição desse conhecimento.

A Idade Média foi o cenário de grandes conflitos entre a Igreja e a nova forma de explicar a Natureza. O maior exemplo foi Galileu Galilei, considerado o Pai da Ciência Moderna, que se viu obrigado a impugnar a sua teoria heliocêntrica frente ao Tribunal da Inquisição sob pena de condenação.

Na Idade Moderna, uma disciplina denominada Filosofia da Natureza, a percursora das ciências naturais, assenta o seu entendimento na observação e experimentação. René Descartes apoiou a crença racionalista e potenciou a visão reducionista, a mesma em que se baseia a Ciência Moderna para demonstrar que experiências que decorrem em laboratório são uma tentativa de reproduzir a Natureza e, para a qual, no extremo, podemos extrapolar. Mais tarde, Filosofia e Ciência começam a divergir e a basear-se em princípios distintos. Dá-se a Revolução Científica.

Na Idade Contemporânea, nomeadamente no século XIX e XX, estabelece-se o Método Científico conforme o conhecemos, que visa explicar fenómenos naturais segundo a formulação de uma hipótese e comprovando-a através de experiências. Rejeita, portanto, uma visão dogmática.

Aparecem as duas teorias evolucionistas mais relevantes, a de Lamarck e Darwin. A publicação de On the Origin of Species em 1859 constitui um marco na história da biologia moderna.

Mais tarde, Gregor Mendel, é considerado Pai da Genética ao postular as leis da hereditariedade, conhecidas como Leis de Mendel, decorrentes das suas experiências com cruzamento de plantas, nomeadamente ervilheiras (1866). É importante salientar no âmbito deste artigo que Mendel era monge da Ordem de Santo Agostinho e muitas das suas experiências foram realizadas no jardim do Mosteiro.

Em 1927, o padre belga Georges Lemaître, que obteve o seu doutoramento no conceituado MIT, propôs que o Universo se encontrava em constante expansão, teoria que foi ignorada pela comunidade científica. Pouco depois, Edwin Hubble descreveu que as galáxias se estão a afastar continuamente. Aí, Lemaître viu a sua teoria comprovada e foi mais além, dizendo que dado estas evidências é possível que as galáxias e, por conseguinte, todo o Universo tivessem tido origem num “átomo primordial”, que ficou conhecida como a teoria Big Bang.

O Islamismo

Depois do Cristianismo, o Islamismo é a segunda maior religião do mundo.

O seu livro sagrado, o Alcorão, afirma que a natureza contempla um conjunto de sinais que conduzem ao Divino. Assim, ciência e natureza são áreas contíguas. Entre os séculos IX e XV, os países muçulmanos, destacaram-se em disciplinas como a matemática, a astronomia, a óptica e a medicina.

Actualmente, apesar de grande parte dos países islâmicos estarem muito evoluídos tecnologicamente, a investigação científica não tem acompanhado esse crescimento, com um número de publicações e citações que não corresponde ao esperado. Algumas razões são apontadas: por um lado, a colonização e declínio das civilizações islâmicas na Idade Média e a ascensão da Europa e da sua abordagem científica que assentava numa diferente filosofia da natureza; por outro, o surgimento de formas mais conservadoras de olhar para a religião muçulmana reprimiu o pensamento científico.

Ciência e Religião ou Ciência vs. Religião – Os diferentes posicionamentos

Há cientistas que defendem que ciência e religião são rivais inquestionáveis, porque discutem genericamente as mesmas questões, e que os dogmas religiosos são absolutamente incompatíveis com o método científico. Afirmam ainda, que a religião tem um efeito negativo sobre a sociedade, como foi o caso de John William Draper através da sua obra History of the Conflict between Religion and Science (1874) e, mais actualmente, o biólogo Richard Dawkins e alguns filósofos seus contemporâneos.

Outros há, porém, que defendem que estes domínios não são incompatíveis se aceitarmos que a ciência se refere ao mundo natural e a religião visa abranger o natural e o sobrenatural. Portanto, não há necessidade de uma posição extremista em relação a nenhuma delas e é perfeitamente possível optar por uma carreira científica tendo fé. Assim sendo, qualquer hipótese que não possa ser contradita ou corroborada está fora do domínio da ciência. E desta forma podemos encarar a religião como um prolongamento da ciência que, através dos seus dogmas baseados nas Sagradas Escrituras, fornecem uma base de conhecimento em âmbitos nos quais o método científico não se pode aplicar. O investigador norte-americano, Francis Collins, diretor do Projecto do Genoma Humano (tão bem conhecido entre a comunidade científica) defende essa “dualidade” da sua vida num livro intitulado The Language of God: A Scientist Presents Evidence for Belief (2006). A Fundação BioLogos tem como objetivo mostrar a possível conciliação entre ciência e religião (https://biologos.org/). Há ainda a revista científica Zygon: Journal of Religion and Science, que se destina à publicação de artigos mostrando a interação entre ciência e religiões humanas e convicções morais.

Existem, entre estes dois posicionamentos, um sem-número de outras posturas a adoptar. Uma, que considero digna de salientar, é explicada pelo antropólogo Carel van Schaik e o historiador Kai Michel no seu livro The Good Book of Human Nature: An Evolutionary Reading of the Bible. Dois não-crentes reconhecem o valor da Bíblia numa perspectiva evolucionista – a transformação do Homem caçador-recolector a parte integrante de uma sociedade mais sedentária devido à agricultura. É neste contexto que surgem as religiões.

Tenho, no entanto, ressalvas a fazer. Primeiro, temos que ter em consideração que uma coisa é Deus, uma força superior e transcendente, e outra são as instituições religiosas. Estas, que são desenvolvidas por humanos, são susceptíveis a erros. Por outro lado, temos a ciência, que deve, em teoria, rejeitar dogmas e, através do método cientifico, comprovar (ou não) as suas hipóteses. No entanto, mais frequentemente do que o desejado, vemos cientistas do ponto de vista individual defenderem exaustivamente as suas teorias rejeitando a contradição da experimentação.

Mas afinal, qual é o papel da religião na vida de um cientista?

Talvez esta questão esteja mal formulada, porque na verdade não há um “papel” da religião. Quando acreditas num Deus que está acima de todas as coisas, és tu quem desempenha o papel que Ele escolheu para ti e não o contrário.

A religião é sempre um porto seguro. Não interessa quão angustiante seja o meu dia, há um conforto que está sempre lá, os conselhos de Quem só nos quer bem. Afinal “o choro pode durar uma noite, mas a alegria vem pela manhã” (Salmos 30:5). É a minha forma de viver em paz.

E como concilio Deus com o meu dia a dia em ciência?

Para mim é simples, porque não é comparável. Chamo novamente Aristóteles ao texto e atrevo-me a dizer que a melhor descrição seria: “O todo é maior do que a simples soma das suas partes”.

Primeiro, a ciência é um interesse e uma ocupação, sem desprimor pela verdadeira paixão que representa para mim. Já a religião é parte da pessoa que eu sou. Para mim, Deus criou tudo aquilo que conhecemos. Sabe tudo, sempre soube. Foi dando sabedoria aos homens, para construírem ferramentas cada vez melhores associadas a um pensamento crítico cada vez mais apurado, para analisarem cada vez mais detalhes e diferenciarem estruturas cada vez mais pequenas. Portanto, a máxima de que Deus delineou todo o trajecto da nossa vida até antes de sermos um plano dos nossos pais, aplica-se igualmente ao meu trabalho. Portanto, Ele antes de mim, conhece os mecanismos através dos quais o cancro surge e progride. Ele, antes de mim, sabe que eu ia ser bióloga e não astronauta como um dia pensei. Ele, antes de todos os investigadores aeroespaciais, sabe que existe água em Marte e nós só “comprovámos” na semana passada.

Acredito piamente, que aquilo que vemos, tentamos perceber e demonstrar, é só um pequeno espectro da imensurabilidade das coisas de Deus.

Às vezes, e contra mim falo, imagino Deus a “divertir-se” com aquilo que nós [cientistas] “achamos” que comprovamos. A travessia do Mar Vermelho por Moisés e o povo hebreu do Egipto para a Palestina descrito no livro de Êxodo é, para mim, um bom exemplo. Em 2010, uma equipa de investigadores norte-americanos, divulgou resultados que demonstram que a separação das águas é um processo passível de ser explicado com base nas leis da física.

Por outro lado, há momentos em ciência, e nomeadamente em medicina, que, com base no seu conhecimento limitado não pode garantir que a pessoa A ou B vá conseguir viver mais do que X tempo. É, infelizmente, uma realidade frequente dos doentes com cancros avançados.  E vemos, não raras vezes, a Fé “salvar” essas pessoas.

Criação vs. evolução – os primeiros dados científicos

Vou à igreja desde cedo e leio a Bíblia. Para uma criança que vive uma infância próxima da religião, os primeiros dados científicos são desconcertantes. Lembro-me de um episódio. No 7º ano, em História, fala-se pela primeira vez sobre as teorias da evolução e as primeiras civilizações. Adorei esta matéria e tenho vontade de ir ao Egipto até hoje. No teste do final do período, que era relativamente acessível, havia uma pergunta que me fez matutar os minutos todos até ao final. Era uma pergunta de escolha múltipla sobre qual é a origem do Homem moderno. Uma das opções era “a) Adão e Eva” e “b) a evolução de espécies”, entre outras. É até irónico depois de ter feito o teste todo sem grande dificuldade. No dia da entrega dos testes, fizemos a correção em conjunto, no quadro, e quando chegámos a esta pergunta todos os meus colegas responderam “b)” em uníssono. E a professora ainda rematou com “quem falhasse esta pergunta, não tinha percebido nada da matéria deste período!”. É claramente o espelho deste “conflito”.

Outros testemunhos

Até hoje, porque agora aceitei expor-me através deste texto, algumas pessoas sabem a minha profissão, mas muita pouca gente conhece o meu lado espiritual. É uma opção porque considero um assunto do foro íntimo. Não tenho por hábito querer converter ninguém. Longe disso. A fé é um exercício individual. Sei que me faz bem, que é o meu tipo de refúgio e cada um é livre de ter o seu.

Felizmente, fui-me cruzando com pessoas, amigos que são cientistas, e que veem na religião a mesma proteção. E melhor, que aceitaram partilhar a sua visão.

Deixo-vos aqui:

“Não achas incrível que ainda existam idiotas hoje em dia que acreditam em Deus?”. Foi a pergunta feita por um colega de trabalho. Ao que eu respondi “Sim, estás a olhar para um deles”. Se recebesse um euro, por cada vez que entrei em discussões sobre o facto que trabalhar em ciência não invalida ter religião, já tinha financiamento para projectos até à reforma. Este cenário, visto como uma dicotomia difícil de digerir, causa azia a bastante gente na área da Primatologia (e não só). A religião, não tem que tolher a minha capacidade científica, porque ao contrário do que já me foi dito, não concordo que crentes sejam piores cientistas que não crentes. Como se diz no meu querido Alentejo, “larguem-me da mão” e aproveitem e usem toda essa eloquência momentânea para melhorar a qualidade científica de muitos estudos que andam por aí.

Filipa Paciência, aluna de doutoramento no Deutsches Primatenzentrum (DPZ), Göttingen, Alemanha

Talvez pelo facto da religião à qual me identifico ser considerada mais uma filosofia do que propriamente uma religião, eu não tenha assim tantos conflitos internos entre os dois temas abordados neste artigo. Como cientista e ser pensante, surgem-me os questionamentos e há muito com o que não concordo, evidentemente. No entanto, há coisas que sentimos, e para isso não precisa haver uma comprovação científica ou materialista. A fé é uma delas, este objeto metafísico capaz de impulsionar e manter uma pessoa firme no seu propósito, a acreditar que pode e que tem o apoio de uma força maior. Enquanto o pensamento científico não seca lágrimas, o religioso conforta e traz esperanças. Faço uso do aforismo adotado por Shakespeare, “Há mais coisas no céu e na terra, Horácio, do que sonha a tua filosofia”.

Luciana Bueno, investigadora de Pós-Doutoramento no Instituto Nacional de Câncer, Rio de Janeiro, Brasil

Não sei se o fim dos tempos decorrerá como relata o Livro de Apocalipse ou se porventura todo o Universo se colapsará num único ponto denso e quente num processo denominado Big Crunch. Não sei sequer se vou acordar amanhã.  O futuro a Deus pertence.

Bibliografia

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Helferich, C (2006) .História da Filosofia. Editora Martins Fontes.

Huisman, D (2004). Dicionário dos Filósofos. Editora Martins Fontes.

Gruning, H (2007). Deus e a Nova Metafísica- um diálogo aberto entre ciência e religião. Editora aleph.

Japiassu, H (2005). Ciência e Destino Humano. Editora Imago.

Magner, Lois N (2002). A History of the Life Sciences. Marcel Dekker Inc.

Sturtevant, A. H. (2001) A History of Genetics. Cold Spring Harbor Laboratory Press: Cold Spring Harbor.

Muzaffar Iqbal (2007). Science & Islam. Greenwood Press.

Toshihiko Izutsu (1964). God and Man in the Koran. Weltansckauung.

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Huff, T (2003). The Rise of Early Modern Science: Islam, China and the West (second edition), Cambridge: Cambridge University Press.

Edis, T (2007). An Illusion of Harmony: Science and Religion in Islam, Amherst, NY: Prometheus Books.

Richard Dawkins (2006). The God Delusion. Bantam Books.

Fundação BioLogos (https://biologos.org/)

Zygon: Journal of Religion and Science (http://www.zygonjournal.org/)

Carel van Schaik, Kai Michel (2016). The Good Book of Human Nature: An Evolutionary Reading of the Bible. Basic Books.

Drews C, Han W (2010). Dynamics of wind setdown at Suez and the Eastern Nile Delta. PLoS One.

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