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Cinemas fechados, portais de ‘streaming’ abertos: há platéias “não-sociais”?

Cinemas fechados, portais de ‘streaming’ abertos: há platéias “não-sociais”?

À medida que as restrições preventivas de convívio urbano são adotadas, reinvenções cotidianas são postas em prática. Formas oportunistas (e bem-vindas) de solidariedade são demonstradas por várias empresas, sobretudo as de telecomunicações. A acessibilidade gratuita a inúmeros conteúdos pagos está assegurando um entretenimento benfazejo a quem precisa (e consegue) ficar em casa. Espetáculos improvisados de vários artistas estão sendo transmitidos de suas próprias residências, como forma de assegurar a popularidade necessária à venda de ingressos, para quando os concertos externos poderem ser novamente realizados. Nada é por acaso, afinal…

Não obstante sermos agradecidos por termos acesso a esta pletora sobrevivencial de conteúdos artísticos, que surge como compensação virtual à impossibilidade provisória de consumo exterior – enquanto apanágio fundamental da “obra de arte na era da reprodutibilidade técnica”, para fazer um chiste benjaminiano –, a inexistência de platéias físicas torna patente um problema apreciativo: a impressão de que “todo mundo pode ser crítico” proporcionada pela Internet resvala numa limitação funcional do modo como as informações estão sendo veiculadas. A arte serve para aproximar as pessoas. Mas a sugestão primordial de enfrentamento pandêmico é o distanciamento social. Temos uma contradição? Nem de longe. Mas há a hipertrofia de condições que legitimam o jargão senso-comunal de que a depressão é “o mal do século XXI”. Infelizmente, procede!

Ao assistirmos aos filmes, programas, concertos e até mesmo experiências sexuais midiaticamente transmitidas na solidão de nossos ambientes receptivos, nossas apreciações passam a ser atravessadas por esta mesma solidão sustentacular. E o cansaço é instalado enquanto conseqüência da saturação daquilo que se ama. Confirma-se assim o laudo do filósofo italiano Umberto Eco [1932-2016]: “excesso de informação provoca amnésia”. De que adianta ver e ouvir tanta coisa se não se tem com quem conversar? Ah, mas os bate-papos virtuais são abundantes, as mídias sociais são de facílimo acesso, as opiniões especializadas sobre qualquer assunto podem ser encontradas em frações de segundos. E, da mesma forma que sexo por computador não engravida (ainda que cause sucedâneos aprazíveis de orgasmos), debates unicamente à distância não possuem a mesma envergadura emocional de que as relações intelectuais necessitam. E, tautologicamente falando, a carência de algo gera muito mais carência… E psicoses!

Hora de uma longa mas imprescindível citação do teórico marxista Antonio Gramsci [1891-1937], contida no livro “Concepção Dialética da História”:

O erro do intelectual consiste em acreditar que se possa saber sem compreender e, principalmente, sem sentir e estar apaixonado (não só pelo saber em si, mas também pelo objeto do saber), isto é, em acreditar que o intelectual possa ser um intelectual (e não um mero pedante) mesmo quando distinto e destacado do povo-nação, ou seja, sem sentir as paixões elementares do povo, compreendendo-as e, portanto, explicando-as e justificando-as em determinada situação histórica, bem como relacionando-as dialeticamente com as leis da história, com uma concepção do mundo superior, científica e coerentemente elaborada, com o ‘saber’; não se faz política-história sem esta paixão, isto é, sem esta conexão sentimental entre intelectuais e povo-nação. Na ausência deste nexo, as relações do intelectual com o povo-nação são, ou se reduzem, a relações de natureza puramente burocrática e formal; os intelectuais se tornam uma casta ou um sacerdócio (o chamado centralismo orgânico). Se a relação entre intelectuais e povo-nação, entre dirigentes e dirigidos, entre governantes e governados, é dada graças a uma adesão orgânica, na qual o sentimento-paixão torna-se compreensão e, desta forma, saber (não de uma maneira mecânica, mas vivida), só então a relação é de representação, ocorrendo a troca de elementos individuais entre governantes e governados, entre dirigentes e dirigidos, isto é, realiza-se a vida do conjunto, a única que é força social; cria-se o ‘bloco histórico’”.

O que fica evidente neste excerto? Em termos extensivos – no afã por transladar esta lição de vida ao contexto hodierno –, que as angústias domésticas que surgem como decorrência do confinamento emergencial recomendado para atenuar a proliferação mundial do CoronaVírus são reflexos de problemas nacionais bem mais graves, relacionados às manifestações de extrema-direita que consagraram-se vencedoras nas eleições políticas de vários países. E – mais uma vez, não por acaso – são justamente os desencadeadores de surtos repressivos que reclamam que estão sendo prejudicados pela situação de falta de comunicação que lhes é conveniente enquanto palco para disseminação e reprodução de idéias torpes. No Brasil, o (anti)presidente Jair Bolsonaro declarou publicamente que está muito mais preocupado com a situação econômica dos empresários e comerciantes que com a perda das vidas de inúmeros cidadãos. Como rebater a ignorância governamental quando percebemo-nos retraídos pela solidão engendradora de impotência?

Muitas perguntas foram lançadas neste texto, que deveria estar subordinado à coluna cinematográfica, mas converteu-se num arremedo de artigo de opinião. Uma impressão não anula a outra, afinal. E, para que não pareça que estamos subestimando algum tema geral, segue uma recomendação fílmica: num intervalo entre uma e outra atividade doméstica ou reflexiva, que tal assistirem ao curta-metragem “Observando el Cielo” (2007, de Jeanne Liotta), que sintetiza, em menos de vinte minutos, sete anos de imagens espaciais, contrastadas em relação aos ambientes terrestres de onde foram captadas? Parece uma recomendação vaga, uma proposta advinda de um devaneio, e talvez efetivamente seja. Mas coaduna-se a algo urgentemente relevante na conjuntura atual: não apenas sobreviver, mas também interagir em relação ao próximo. Voltaremos ao assunto…

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