Este artigo parece não estar relacionado com o turismo, apenas o facto de a autora ser a Madalena Simões Lança Rala, aluna do Curso de Gestão Hoteleira da Universidade Europeia da Unidade Curricular “Informação e Animação Turística”.
Qual a razão de enviar este texto? Na verdade, como tantos outros docentes, estou a lecionar via online. De forma a otimizar as sessões de e-learning, nomeadamente nas aulas práticas, coloquei um desafio através de um trabalho que consistiu em dar uma lista de 20 substantivos, 10 adjetivos e 5 verbos a cada aluno. Cada um tinha de criar uma história com essas palavras, obrigatoriamente. O objetivo foi colocar os alunos perante uma situação de improvisação e de condicionamento, de forma a conseguirem ultrapassá-la. Ter a noção de improvisação perante um contexto condicionado é uma competência importante na área da animação turística.
A Madalena Rala escreve um texto singelo, “O Primeiro Dia”, sobre a situação que o mundo está a enfrentar. É digno de se ler!
“O Primeiro Dia”
09:47
O telefone na minha mesa de cabeceira desperta-me mais uma vez e sinto o aroma a rosas que a minha mãe deve ter deixado antes de sair para o trabalho. Penso que seja a segunda ou terceira vez que toca depois de eu apertar o botão snooze do ecrã. Não é típico de mim deixar-me dormitar a esta hora do dia, normalmente basta o primeiro segundo do despertador e estou de pé pronta para correr para a casa de banho tentar estar o mínimo apresentável para enfrentar mais um dia.
Hoje, é um dia diferente. Hoje, estou de quarentena. É dia 15 de Março de 2020 e Portugal (país mais ao litoral da Europa) e o resto dos órgãos sociais do mundo encontram-se numa luta constante com um problema intangível. A falta de tangibilidade deste problema é talvez a razão pela qual metade do mundo não crê na sua veracidade. Se me é permitido dizer, não sou totalmente um modelo a seguir. Eu mesma tive as minhas dificuldades em acreditar na gravidade da situação e ainda me custa saber que estou a perder tempo da minha vida universitária.
12:35
Estou prestes a entrar na minha primeira aula online oficial, se é que posso dizer “entrar”. Continuo na mesma habitação, o meu quarto parece-me um sítio mais aconchegante para assistir a uma aula mas não é sem duvida o mais saudável para a minha sanidade e para o meu percurso académico. Enfim, ao menos continuo a poder usufruir da minha educação. São nestes momentos que me apercebo que nasci numa época de sorte e num ambiente igualmente afortunado. Não me imagino a ir para a guerra, a minha aversão a armas e a conflitos não seria a melhor mistura… A não ser que gostassem de ver uma menina de 20 anos a discutir com o suposto inimigo com a finalidade de tentar chegar a um consenso sem ferimentos e vidas por desenvolver.
Neste momento, estaria a entrar no carro da minha avó. Iria o caminho quase todo a falar com ela, quer seja sobre como se irá desenvolver o dia dela como o quão dançantes estão as arvores naquele dia. Ao invés disso, encontro-me sentada a organizar a minha secretária enquanto lhe ligo por telemóvel. Encontra-se no seu alpendre a ler um livro – se tivesse de adivinhar, diria mais um da Nora Roberts ou do Nicholas Sparks, as mulheres da minha família sempre tenderam a ter um lado romântico acentuado- talvez me junte a ela também depois da aula, tenho alguns livros que pretendo devorar nestas semanas.
Lápis, caneta esferográfica, borracha, marcador… check check check. Tudo pronto para começar este novo modelo de educação.
15:00
A aula virtual dá por encerrada, sinto-me produtiva e um bocadinho mais esperta do que hoje de manhã. Porém, estes sentimentos rapidamente se desvanecem e a fome torna-se a única preocupação na minha mente.
O sol já ilumina o meu quarto todo e não consigo resistir, a urgência de sentir vitamina D na minha pele já grita por todo o lado. Levo o prato e o copo de sumo de laranja para a varanda e almoço lá enquanto espero pela próxima aula virtual. Quem diria que nunca mais teria de esperar na fila do bar para almoçar num intervalo escolar. O meu almoço consiste numa porção de esparguete com ovo estrelado e bife de perú, normalmente também não sou tão específica com os detalhes da minha vida mas nestes dias que se seguem acho que também faz parte da vossa curiosidade saber o conteúdo da minha alimentação.
15h04
Consigo ouvir os chilrear dos pássaros deste e do mais longínquo planeta, uma tempestade de ideias começa a surgir na minha mente de como poderei ser produtiva nesta quarentena e rapidamente me comparo a um jovem Fernando Pessoa ( trocando apenas o meu sumo de laranja pelo copo de vinho). Com a lista pronta a ser realizada e almoço prestes a ser acabado, aproveito para ler um bocadinho. Apresso-me a ir buscar “Orgulho e Preconceito”, este encontra-se perto da montanha de livros da minha estante.
Após voltar ao meu lugar deparo-me com uma esbelta silhueta na varanda do prédio vizinho. Esta pessoa cria em mim uma curiosidade insaciável e sinto cada osso do meu esqueleto a estremecer. Esta encontra-se dedicada também à leitura de um livro ( ai… como gostaria de saber o que lê, conseguiria ter uma melhor perceção da sua personalidade), os seus pés encostados a um alto vaso pleno de flores da serra e o seu curto cabelo esvoaça como se estivesse ao lado de um rio.
Sinto dentro de mim um furacão de sentimentos nunca antes desenvolvidos e sinto-me estranhamente contente. Contente porque sinto que esta quarentena seja talvez um sinal do destino, estaria já determinada a conhecer o amor da minha vida? ( Sempre me disseram que conheces o amor da tua vida até aos 21 mas azarada como eu sou, acreditava fielmente que esse não seria o meu caso).
Rapidamente começo a fantasiar, imagino uma pessoa determinada, engraçada, e com um toque conservador que cativa qualquer um. Diria também pela maneira como persiste em dançar com os seus pés que tem um lado chato e irrequieto, algo que trago na minha personalidade também.
Cruzamos olhares e depressa foco o meu olhar no meu livro ainda fechado. Quero poder olhar de novo mas não quero parecer um burro a olhar para um palácio, quer dizer, palácio não.. diria mais um navio, isto porque um palácio está sempre parado e eu sinto que com esta pessoa estaria constantemente em viagem. Devo dizer que é até irónico esta coincidência da minha vida, uma menina que se distanciava do romantismo das mulheres da sua família agora encontra-se na maior coincidência romântica da sua vida. Será confiável acreditar que isto não é apenas um sonho?
Espreito pelo canto esquerdo do meu olho e vejo a silhueta a levantar-se. Pergunto-me se devo gritar, falar ou apenas acenar… Mas a minha timidez torna-se maior do que a minha vontade e vejo-o dirigir-se para dentro do seu quarto. Este rio de sentimentos remorsos tomam conta de mim e rapidamente começo a pensar qual será a sua próxima pausa de leitura…
Olho para o céu e agradeço a algo superior a nós pelo lado bom de estarmos nesta curiosa quarentena, poderei estar a escrever a mais bela história de amor.