Participar no SISGA — Salón Internacional de les Sidres de Gala — em Gijón, nas Astúrias, foi uma experiência que ultrapassou o simples encontro gastronómico. Ao observar como os espanhóis, em particular os asturianos, vivem e apresentam a sua sidra, apercebi-me que não vendem apenas uma bebida, mas antes uma narrativa cultural que transformam um produto em identidade. A sidra não é apenas bebida, é ritual, é património, e até espetáculo! O escanciado da sidra, consiste em servi-la vertendo-a de grande altura, pode-se dizer que é um ato técnico, mas resulta também num ato performativo, converte-se num espetáculo que envolve e emociona o público. Tudo parece pensado para criar uma experiência coerente, onde cada detalhe, desde os rótulos à decoração, se alinhava com uma história comum: a da sidra asturiana como património vivo. Esta vivência, profundamente subjetiva e marcada pelo meu olhar, levou-me a refletir sobre como nós, portugueses e em especial madeirenses, raramente conseguimos transformar a nossa história e tradição em elementos de mercado com igual profissionalismo e coerência.
Essa reflexão remete diretamente para a questão de como conciliar tradição e inovação. Frequentemente, encaramos estes conceitos como opostos, como se inovar fosse sinónimo de contrariar a tradição, e preservar a tradição fosse recusar qualquer forma de inovação. No entanto, como demonstra Jesús Contreras (2024), a contemporaneidade alimentar situa-se precisamente nesse espaço intermédio onde tradição e inovação coexistem, se confrontam e se complementam. O autor mostra que as dinâmicas alimentares atuais se encontram entre polos aparentemente contraditórios, mas que, na verdade, se interligam: por um lado, a inovação associada às tecnologias, por outro, a conservação. Para Contreras, a tradição não é um resquício estático do passado, mas sim um património vivo, continuamente reinterpretado e reinventado de acordo com as necessidades do presente. Isto significa que tradição e inovação não devem ser vistas como forças de exclusão mútua, mas como dimensões complementares capazes de criar valor simbólico e económico.
O exemplo asturiano mostra como essa complementaridade pode ser bem aproveitada. A cultura da sidra foi recentemente inscrita pela UNESCO como Património Cultural Imaterial da Humanidade, reforçando a sua dimensão de legado, mas ao mesmo tempo é promovida de forma moderna, com marketing coordenado, turismo integrado e eventos internacionais como o SISGA. Ao transformar a sidra em património e espetáculo, os asturianos garantem a continuidade da tradição, mas também a sua adaptação ao mercado global. É a demonstração clara de que inovação não implica descaracterização, mas pode significar novas formas de contar e viver a tradição.
Em Portugal e na Madeira, a situação é bem diferente. Temos produtos e práticas culturais de enorme riqueza, mas frequentemente falha-nos a confiança em valorizá-los como ativos estratégicos. Falta-nos coordenação, profissionalização e, sobretudo, a construção de narrativas consistentes. Como defende Contreras (2024), os produtos tradicionais ganham valor por estarem ligados à memória, à identidade e à proximidade, mas é precisamente essa dimensão cultural que torna difícil a sua objetivação e normalização. Talvez por isso, muitos dos nossos produtos permanecem no limbo entre a boa intenção e a invisibilidade. Não criamos marcas coletivas fortes, não temos estratégias de marketing, e a valorização cultural ainda é feita de forma dispersa e pouco profissional. Enquanto isso, os espanhóis conseguem, até inventando ou reinventando tradições, transformá-las em bens consumíveis com alto valor simbólico e económico.
Mas a valorização da tradição não é apenas uma questão de turismo. Estudos recentes mostram que o património cultural imaterial pode ter um papel decisivo no desenvolvimento rural e na fixação de pessoas. Shakya e Vagnarelli (2024) demonstram que o património, quando bem articulado com inovação, gera novas atividades económicas sustentáveis e reforça a qualidade de vida local, evitando o êxodo rural. Do mesmo modo, Signes-Pont et al. (2022) analisaram o caso de Tàrbena, em Espanha, onde a recuperação de práticas e elementos tradicionais não só atraiu visitantes, mas também fixou residentes, criando uma economia mais diversificada e resistente. A tradição, nesse contexto, não é apenas uma memória do passado: é uma âncora de futuro, capaz de criar oportunidades, reforçar a coesão social e incentivar jovens e famílias a permanecer em territórios muitas vezes ameaçados pela desertificação humana. Também Kouřilová (2017) destaca que projetos de promoção do património rural geram impactos diretos em termos de emprego e empreendedorismo, mas igualmente efeitos indiretos como a revitalização comunitária e a construção de identidades fortes que aumentam o sentimento de pertença. A tradição, portanto, é simultaneamente recurso económico e recurso social.
Em termos de políticas públicas, a União Europeia tem reconhecido esse potencial. O relatório da EU CAP Network (2022) enfatiza que a gestão do património rural, material e imaterial, deve ser vista como motor de inovação e de sustentabilidade. Ao estimular cadeias curtas de valor, promover produtos de proximidade e reforçar a ligação entre território e economia, a valorização cultural torna-se não apenas instrumento cultural, mas estratégia de desenvolvimento económico e social. Neste sentido, tradição e inovação voltam a surgir não como polos opostos, mas como dimensões convergentes para a construção de futuros mais coesos e sustentáveis.
A minha experiência no SISGA deixou-me, portanto, dividido entre a admiração e a frustração. Admiração pela forma como os asturianos conseguem viver e vender a sua tradição de forma orgulhosa, integrada e convincente. Frustração por perceber que nós, com recursos culturais tão ricos, não conseguimos ainda dar esse salto. No fundo, aquilo que Contreras (2024) descreve como o consumo do passado e a valorização cultural, transformada em indústria, é exatamente o que vi acontecer em Gijón. O passado é consumido, mas não de forma banal. Essa talvez seja a maior lição: não devemos temer colocar a tradição no mercado, porque isso não significa destruí-la, mas sim garantir a sua continuidade.
Se quisermos transformar o nosso legado em motor de desenvolvimento, precisamos de ousadia para reinterpretar a tradição, profissionalismo para a comunicar e coordenação para a estruturar. Precisamos de acreditar que a nossa história vale a pena ser vendida e que a sua comercialização não é sinónimo de vulgarização, mas de valorização. É necessário romper com a timidez e assumir que tradição e inovação não se excluem, mas se reforçam mutuamente. Se tivermos a coragem de investir na valorização cultural estratégica, podemos não só atrair turistas, mas fixar pessoas, revitalizar territórios e reforçar culturas locais. Do legado ao mercado, o caminho faz-se com narrativas, coordenação e orgulho. Se quisermos que a nossa tradição continue viva, temos de aprender a vendê-la com autenticidade, mas também com estratégia. Só assim deixaremos de ser espectadores da valorização alheia para passarmos a protagonistas da nossa própria história.
Referências
Contreras, J. (2024). A contemporaneidade alimentar: entre inovação e tradição. DIAITA: Food-Heritage, (1), e0107-e0107. https://doi.org/10.21814/diaita.0107
Kouřilová, J. (2017). Economic and social impacts of promoting cultural heritage. European Countryside, 9(3), 486–503. https://doi.org/10.1515/euco-2017-0029
Shakya, M., & Vagnarelli, G. (2024). Creating value from intangible cultural heritage — the role of innovation for sustainable tourism and regional rural development. European Journal of Cultural Management and Policy. https://doi.org/10.3389/ejcmp.2024.12057
Signes-Pont, M. T., Cortés-Plana, J. J., Boters-Pitarch, J., & Mora-Mora, H. (2022). Cultural heritage and sustainable rural development: The case of Tàrbena, Spain. Heritage, 5(4), 3010–3031. https://doi.org/10.3390/heritage5040156
EU CAP Network. (2022). Harnessing the economic and social potential of rural heritage. European Commission. https://eu-cap-network.ec.europa.eu/publications/harnessing-economic-and-social-potential-rural-heritage_en



