EnglishFrenchGermanItalianPortugueseSpanish
EnglishFrenchGermanItalianPortugueseSpanish

Estigma e Saúde Mental – Um olhar ético

Estigma e Saúde Mental – Um olhar ético

Nota de introdução:

O nosso olhar sobre esta temática é apenas um olhar ético sobre as relações humanas. Analisaremos; a) os aspetos concetuais e práticos da saúde mental e perturbação psíquica; b) seguindo-se depois uma abordagem sobre o incómodo da diferença na pessoa comum, entre norma e o desvio; c) examina-se também as razões do estigma em saúde mental, o alienado, a partir dos grandes princípios bioéticos.

  1. Saúde Mental uma abordagem conceitual e prática.

Os seres humanos relacionam-se facilmente pelo corpo, mas muito dificilmente pelo espírito. Quando o cérebro humano adquiriu, no desenvolvimento evolutivo, um número muito elevado de neurónios ativos na região pré-frontal, constitui-se um cérebro executivo, como lhe chama Goldeberg (Serrão, D. 2007). Para este neuropsicólogo, os lobos frontais, são de facto, o órgão da civilização; é este órgão que constrói, no Homem, as capacidades que o distinguem, hoje, dos restantes Primatas. É pela ativação do córtex pré-frontal que o homem formula as intenções e objetivos e desenha planos das ações necessárias para os atingir; que relaciona as capacidades cognitivas para a implementação desses mesmos objetivos, coordena essas capacidades e aplica-as numa sequência bem ordenada.  

É pela atividade dos lobos frontais que os seres humanos avaliam as suas ações, como um sucesso ou um fracasso em relação às intenções, previamente formuladas e à intencionalidade geral de todos os comportamentos.

Os lobos frontais são como um maestro de uma orquestra, que não toca nenhum instrumento específico, fá-la tocar com harmonia. Mas se esta parte cerebral é afetada por lesão a pessoa vai viver, vai usar uma linguagem, reconhece os objetos, memoriza informações percetivas, mas a atividade cognitiva desintegra-se. Como sem o maestro os instrumentos produzem sons, mas a sinfonia não acontece.

A saúde mental é a sinfonia perfeita, é como uma orquestra bem afinada, sem desafinações e sem a entrada fora de tempo, de um ou outro instrumento musical. A perturbação psíquica é, muitas vezes, consequência de uma má direção deste maestro, o córtex pré-frontal, que agita a batuta sem descanso ou fica imóvel e inerte desorientado outras funções do tronco cerebral.

Aos lobos frontais chega toda a informação do mundo exterior, captada pelas vias sensitivas, sensoriais e extrassensoriais; dos lobos frontais saem as ordens para a execução de respostas ponderadas e equilibradas que se sobrepõem e até anulam as respostas preformadas de outros níveis cerebrais de tratamento das perceções, como o nível vegetativo e o emocional. A perturbação psíquica é a perturbação no equilíbrio ativo entre estas duas vias, ascendente e descendente, entre estímulos, múltiplos e respostas variadas e complexas.

Egas Moniz, ao cortar esta recíproca ligação, transformou agitados compulsivos e agressivos em tranquilos e apáticos. Na verdade, desumanizou-os (Serrão, D. 2007).

  • Uma abordagem sobre o incómodo da diferença na pessoa comum, entre norma e o desvio.

A presença de uma pessoa com perturbação mental surpreende e incomoda a pessoa comum. Mas também incomoda o médico e o enfermeiro que contactam com uma pessoa com perturbação mental

No passado eram as grilhetas, agora as poderosas drogas neuropáticas modernas, são a demonstração desta surpresa, deste incómodo e da rejeição. Sabemos conviver com a norma, mas não sabemos conviver com o desvio. Os chamados comportamentos desviantes produzem-nos uma imediata resposta de rejeição discriminante. Eles não sabem viver em sociedade; eles não aceitam as nossas regras, não cumprem as normas do viver coletivo, não são dignos, não merecem estar na nossa presença. Esta é toda uma ladainha bem-pensante para justificar a indiferença ou rejeição, o castigo e a discriminação (Serrão, D. 2007).

  • As razões do estigma em saúde mental, o alienado

A pessoa que não pensa como nós, que não interpreta como nós, que não decide como nós, que não tem objetivos como nós temos, nem constrói um projeto de vida como nós construímos, está fora do universo dos humanos é alheio à normal forma de viver humano. Ou seja, está alienado.

Este é o estigma – alienado. O alienado é um estranho, um alheio, com o qual é suposto não comunicar. A força deste estigma de pessoa com alienação mental é, ainda, muito grande e bloqueia a comunicação. Particularmente quando o alienado é visto como um perigo para a vida dos outros, como, por vezes pode ser.

O recurso a medicamentos, ditos tranquilizantes e ao internamento, que pode até ser legalmente compulsivo, é uma forma de gerir a comunicação com os alienados. Mas aqui há um problema ético que tem a ver com os profissionais de saúde mental e com a sociedade.

A sociedade, em geral, e a pessoa comum em particular e as famílias igualmente, não aceitam os alienados no seu seio. De facto, estão a rejeitá-los quando os consideram como doentes e os entregam aos cuidados de saúde. Mas pode acontecer que o alienado não se reconheça como tal, vai ao engano ou à força da lei. Nesta situação é ofendido o princípio bioético do respeito pela sua autonomia da pessoa, o qual exprime o valor muito substantivo da liberdade humana que o profissional de saúde deve proteger quando a autonomia está desprotegida devido à sua vulnerabilidade.

Como referido, o cérebro executivo é o centro onde se gera a perceção auto-consciente da liberdade humana. Mesmo na maior turbulência emocional, fonte possível de grande perturbação comportamental, os lobos frontais podem sentir-se livres e capazes de um exercício autónomo.

  • Uma exigência ética: os grandes princípios bioéticos

É uma exigência ética dos profissionais de saúde mental averiguar, como maior cuidado, competência e empatia, até que ponto aquele alienado que é entregue aos seus cuidados, pela família ou pela via policial ou jurídica, tem a possibilidade mental de exercer a sua autonomia pessoal, mesmo que seja só em parte das suas decisões. E deve tudo fazer para que essa janela de autonomia seja respeitada e reconhecida. O profissional de saúde não está ao serviço da família, está ao serviço da pessoa doente.

Tem a obrigação ética de a acolher com respeito – este que é um valioso imperativo ético – e competência, deve procurar estabelecer linhas de intervenção que beneficie  a pessoa doente e evitar tudo o que lhe provoque maleficência; deve ainda rejeitar qualquer discriminação e qualquer rótulo de estigma porque o estigma não é uma questão filosófica nem técnica, mas sim uma questão de ética relacional.

Ao profissional de saúde mental está reservada a difícil, mas nobre e mais elevada tarefa que é a de reconhecer que a pessoa com perturbação mental é particularmente vulnerável e esta vulnerabilidade impõe um cuidado atencioso e tecnicamente competente, bem como de uma elevada exigência ética em todas as intervenções com finalidade terapêutica.

Como nota conclusiva, é pedido ao profissional de saúde mental, para além da competência técnica e científica uma preocupação específica que é a de respeitar os grandes princípios bioéticos na sua prática clínica, mas também no seu viver pessoal: o respeito pela autonomia, a beneficência, não-maleficência, equidade e vulnerabilidade. É por estes que devem orientar toda a comunicação com o alienado, que não é um alheio, mas é um de nós, que está connosco na grande barra da vida que a todos nos conduz para o sol poente, o ocaso sem retorno.

É difícil? Sim, é! Mas quem escolheu, livremente, esta área de saúde, sabe bem que a facilidade não é sinal de felicidade e que a felicidade não se atinge com facilidade.

Referências:

Serrão, D. (2007) Estigma e saúde mental: Uma abordagem ética. (comunicação na Casa de Saúde S. João de Deus, Barcelos)

Gomes, Carlos Costa – A liberdade ética substantiva no pensamento de Daniel Serrão. In Maria Madalena Soares Esteves; Renato Borges Neto (Orgs.). Sociedade e Conhecimento 9. Rio de Janeiro: Independently published, 2019.


Foto de capa: Domínio público, por Freepik

Descarregar artigo em PDF:

Download PDF

Partilhar este artigo:

Share on facebook
Facebook
Share on twitter
Twitter
Share on linkedin
LinkedIn
Share on email
Email

LOGIN

REGISTAR

[wpuf_profile type="registration" id="5754"]