“A alma é moldada pelas mãos que a tocam e pelas palavras que a ferem.” — Aristóteles
Em cada lar onde reina o silêncio imposto pela dor, instala-se uma ameaça invisível que transcende paredes e séculos: a violência doméstica. Esta realidade, muitas vezes escondida entre os rituais do dia a dia, deixa cicatrizes profundas não apenas nos corpos, mas sobretudo nas mentes e nos valores das gerações futuras. O impacto da violência em casa, física ou psicológica, vai muito além da vítima imediata: ela molda os homens e mulheres que estamos a criar — os futuros cidadãos, pais, líderes e companheiros.
A violência doméstica, definida como qualquer ato de abuso, físico, psicológico, sexual ou económico cometido por um membro do núcleo familiar, continua a ser uma epidemia silenciosa. Em Portugal, o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI, 2024) revelou que foram registadas mais de 30.000 queixas de violência doméstica, com a Madeira a reportar um aumento preocupante de 8,7% em relação ao ano anterior. No arquipélago, onde o tecido social é denso e as redes familiares são próximas, o estigma e o medo do julgamento comunitário fazem com que muitos casos nunca sejam formalmente denunciados, agravando o isolamento das vítimas.
A nível europeu, segundo o relatório da European Union Agency for Fundamental Rights (FRA, 2025), uma em cada três mulheres já experienciou algum tipo de violência doméstica ao longo da vida. No plano global, a Organização Mundial da Saúde (OMS, 2024) classifica a violência doméstica como um dos principais fatores de risco para doenças mentais, dependência química, suicídio e criminalidade juvenil. Mas o que acontece com as crianças que crescem neste ambiente?
Segundo o estudo longitudinal de Blázquez et al. (2025), crianças expostas à violência doméstica — mesmo que não sejam agredidas diretamente — desenvolvem com maior frequência sintomas de stress pós-traumático, depressão, problemas de autoestima e dificuldades em estabelecer relações seguras. São crianças que aprendem que o amor pode doer, que gritar é forma de comunicar e que o medo é um sentimento cotidiano. E o mais preocupante: muitas vezes, estes padrões são normalizados, interiorizados e reproduzidos na vida adulta.
Na Madeira, o Centro de Apoio à Vítima (CAV-Madeira) tem reportado um número crescente de crianças encaminhadas por psicólogos escolares que demonstram sinais de regressão comportamental, ansiedade severa e comportamento agressivo. O psicólogo clínico Rui Mendonça, em entrevista à RTP Madeira (2024), alerta que “muitas vezes, os miúdos reproduzem nas escolas o que veem em casa — não sabem que existe uma alternativa ao grito e à humilhação”.
Esta aprendizagem precoce da violência — como linguagem emocional ou instrumento de controlo — é um dos fatores que perpetuam o ciclo intergeracional do abuso. Meninos que crescem com modelos masculinos agressivos são mais propensos a internalizar a violência como sinal de força ou identidade. Da mesma forma, meninas que observam figuras maternas submetidas à dor emocional tendem a aceitar relações desiguais no futuro. Isto levanta uma pergunta ética e civilizacional: que homens (e mulheres) estamos a criar num ambiente onde a violência é o normal?
A violência psicológica, embora muitas vezes desvalorizada por não deixar marcas visíveis, tem efeitos igualmente devastadores. Segundo o estudo de Reuter et al. (2025), o abuso verbal crónico — desvalorização, ameaças, isolamento, controlo financeiro — está diretamente associado a alterações neurológicas em crianças em idade de desenvolvimento. A exposição constante ao medo inibe a maturação do córtex pré-frontal, responsável pelo controlo emocional, empatia e tomada de decisão. Como consequência, estas crianças têm maior propensão a desenvolver distúrbios comportamentais e baixa capacidade de resiliência social.
No campo da saúde, os efeitos da violência doméstica são devastadores e multidimensionais. Vítimas expostas cronicamente a agressões físicas ou verbais têm risco acrescido de doenças autoimunes, doenças cardiovasculares, distúrbios gastrointestinais e transtornos de ansiedade generalizada (WHO, 2024). Em adolescentes, a correlação entre violência familiar e automutilação, anorexia e abuso de substâncias está amplamente documentada. Além disto, é nas casas com histórico de violência que se registam mais tentativas de suicídio entre jovens — uma realidade também presente na Madeira, onde as urgências de psiquiatria infantil aumentaram 21% entre 2023 e 2024, segundo dados do SESARAM.
A questão da violência doméstica não é, portanto, apenas um problema criminal ou jurídico: é um problema de saúde pública, de desenvolvimento humano e de construção social. E, inevitavelmente, uma questão de valores. Estamos a permitir que a intimidade — o espaço do amor e do cuidado — se torne palco de dor, medo e controlo. O lar, que deveria ser o primeiro lugar de proteção emocional, transforma-se em arena de poder. E os nossos filhos, observadores silenciosos ou vítimas diretas, estão a aprender que amar é dominar, e que conflito se resolve com violência.
Do ponto de vista ético e psicológico, é urgente repensar a forma como educamos para a masculinidade. A narrativa tradicional que associa “ser homem” a dominar, calar, resistir e não demonstrar fragilidade está profundamente enraizada nos contextos familiares onde a violência impera. Como aponta o psicoterapeuta português Gonçalo Fernandes (2024), “o machismo mata não só as mulheres, mas também a alma dos próprios homens que o internalizam”. Homens que foram ensinados a calar a dor tornam-se adultos que não sabem lidar com frustração — e é da frustração que frequentemente nasce a agressão.
Para combater a violência doméstica de forma estrutural, é fundamental investir em três dimensões: prevenção, intervenção e transformação social. Na prevenção, é essencial trabalhar nas escolas temas como empatia, comunicação não-violenta, gestão emocional e igualdade de género desde a infância. A experiência da Islândia, que introduziu programas obrigatórios de literacia emocional nas escolas primárias, mostrou uma redução de 38% nos episódios de bullying e violência entre jovens (FRA, 2025).
Na intervenção, é necessário reforçar as estruturas de apoio psicológico — como linhas de ajuda, gabinetes de crise, casas de acolhimento e terapia familiar — com foco específico em crianças expostas. O apoio a homens agressores, através de programas de reeducação comportamental, também é crucial para quebrar o ciclo. Na Madeira, o projeto “Rever Homens” tem trabalhado com sucesso em sessões de grupo, promovendo reflexão sobre masculinidade, controlo da raiva e responsabilidade afetiva.
Mas talvez o mais transformador seja o que se ensina, ou não se ensina, dentro de casa. O que se diz às crianças quando um prato voa? O silêncio que se mantém quando há gritos do outro lado da parede. Os pedidos de desculpa que nunca chegam. Porque os valores não se ensinam apenas com palavras, mas com exemplos. E o exemplo mais forte que se dá é o da relação dos adultos entre si.
O futuro que estamos a criar não depende apenas das tecnologias que desenvolvemos, das políticas que implementamos ou dos diplomas que entregamos. Depende dos afetos que cultivamos em casa. Dos abraços dados nos momentos de dor. Da escuta ativa quando o outro está a sofrer. Da coragem de dizer “basta” quando alguém ultrapassa a linha do respeito.
Não há sociedade saudável sem lares emocionalmente seguros. E não haverá paz social enquanto a guerra íntima continuar a fazer vítimas entre quatro paredes. Por isso, mais do que combater a violência doméstica, devemos substituí-la — por respeito, por empatia, por humanidade.
Referências Bibliográficas
Blázquez, A., Ferrer, M., & Gómez, A. (2025). Child Exposure to Domestic Violence: Neuropsychological and Emotional Impact. Journal of Child Psychology and Psychiatry.
European Union Agency for Fundamental Rights (FRA). (2025). Violence Against Women Survey. https://fra.europa.eu
Gonçalo Fernandes (2024). Entrevista: Masculinidades e Violência. RTP Madeira.
Harvard Medical School. (2024). Chronic Stress and Cortisol Dysregulation in Domestic Abuse Survivors.
Lima, S., & Costa, M. (2025). Domestic Violence in Island Regions: The Case of Madeira. Journal of Social Work.
Organização Mundial da Saúde (OMS). (2024). Global Status Report on Violence Against Women and Children.
Reuter, M., Wilhelm, B., & Nowak, T. (2025). Psychological Abuse and Brain Development in Adolescents. Psychiatry Today.
RASI – Relatório Anual de Segurança Interna. (2024). Dados de Violência Doméstica em Portugal e Regiões Autónomas. Governo de Portugal.
World Health Organization. (2024). Mental Health Consequences of Domestic Abuse. WHO Reports.
SESARAM. (2025). Relatório Anual de Saúde Mental Infantil – Região Autónoma da Madeira.



