Há mais de duas década que nos debatemos com o problema sem solução à vista. Há 20 anos escrevi esse artigo abaixo, mas podia ter sido ontem. A omissão, a total falta de solidariedade, fiquemo-nos pela solidariedade, com estes infelizes que fogem o quanto podem de seus países. A pé por estradas infindas, sem ter onde dormir ou se abrigar, até que há um oceano que os impede a caminhada, o Mediterrâneo. Leiam o texto de 2009 na versão de 2014:
É a cereja no topo do bolo. Para se juntar a todas as dificuldades e penitências do milenário, vem se somar a incrível situação de algo como uma Espanha em população deslocada, criada do dia para a noite: 50 milhões de seres humanos sem casa, sem país, sem opções, sem emprego, sem identidade, sem comida, sem possibilidades, sem futuro, sem presente, sem condições e sem que nada alguém faça para alterar esta situação permanentemente, resolvendo o problema. Quatro países, Iraque, Sudão do Sul, Síria e República Centro Africana, declarados pela primeira vez na história, no nível 3, máximo de emergência humanitária, podendo mais três países chegar a este nível (Gaza, Yemen e Congo.) (*) esqueceram de decretar também emergência nos países vizinhos que albergam esta imensa massa de deslocados. E temos centenas de milhares de africanos tentando fugir à sua condição para entrar na Europa todos os anos. Lida com este imenso problema um homem bom, o Sr. Eng.º Guterres, um português, de caráter e integridade comprovados, um cristão nos mais, e com os mais, profundos senso e sentimento de solidariedade, o que é mais importante, e com vontade de obter a solução, mas não se cria uma Espanha física do dia para a noite, menos ainda sem os recursos e a geral vontade política para o fazer. Temos a maior encilhada, o maior beco sem saída da história, criado pela ação de alguns. Temos uma verdade histórica que marcará a humanidade de forma permanente até que se resolva. Temos uma situação de exclusão, e toda situação de exclusão é injusta. Daí termos uma injustiça em movimento. Temos uma desumanidade, temos uma enormidade, temos uma abominação que clama por solução.
Estes são os fatos, para além deles, ou em sua substância, está a razão de ser de que eles tenham ocorrido, nunca como agora, nem mesmo durante os conflitos que foram globais, houve este avantajado número de refugiados, acendrados por circunstâncias diversas, tudo se resume na mesma e unificadora razão: Intolerância! 50 milhões de intoleráveis, como se lhes estivessem a dizer nos lugares de onde se refugiaram: Aqui não há lugar para vocês! Andor, ponham-se longe! Fora! Não os queremos aqui, e se ficarem damos cabo de vocês! Intolerância de diversos carizes, religioso, étnico, social, todos eles imateriais, como se estivessem a dizer: Não gostamos de vocês! (E este gostar basta.) Não os queremos aqui! E este ‘aqui’ é o local onde vivem estes milhões e onde sempre pensam viver, ou onde viveram, dependendo da situação, toda a sua vida. Agora, de uma hora para outra, estão excluídos pela força de serem quem são, e os outros, os que os excluem, não os querem, não os aceitam por não disporem das condições e capacidades necessárias à tolerância, e impõem sua intolerância preconceituosa. Sim, porque é disto apenas de que se trata. E os dos sítios aonde se dirigem, fazem o mesmo.
Temos uma Espanha de refugiados, a continuar neste ritmo, em breve serão uma Inglaterra, uma Itália, uma França, e, a persistir, uma Alemanha. Porém como a intolerância ‘ad astra’, que não para de crescer, não dá espaço para obtenção de uma qualquer solução, e carrega, a manutenção desta situação, a raiz da injustiça, bem como a matriz de sua propagação, segue, porque não tolerada pela constelação de países, cada um de per si, bem como em coletivo. Enquanto perdurar esta situação, outras e mais intolerância manifestar-se-ão, numa auto-estimulação, sobretudo porque sabem que não serão penalizadas. Quem expulsar, violar, matar, ou banir grupos de pessoas, em sendo conflito interno de um país (E o que é um país?) nada passará, podem dar vazão à solta às suas maldades neste caso.
Criando um gigantesco problema humano e humanitário, apetece-nos dizer: Têm de conviver, como sempre o fizeram, com estes que agora expulsam, e obrigá-los a tal. Porém se refletirmos um pouco, quando a intolerância é revelada e transformada em ação de exclusão, pouco, ou nada resta fazer para a sua inclusão como o era dantes. É um conflito insuperável, uma causa perdida, e uma fractura exposta, por mais bandagem que se lhe ponha, se não se reconstituir o osso, não tem jeito… Agora, como reconstituir este osso, se o paciente não o querendo, continua a parti-lo e a arrancar-lhe da carne que sustem? Os deslocados não podem ter nenhuma esperança de retorno. E como resolver esta questão? Onde arranjar um país que os queira? Estes pobres diabos que existem porque existem, existem em algum lugar que não é deles, existem numa realidade que não lhes pertence, mas institucionalmente NÃO EXISTEM. Estão, são, porque quem está vivo é, está, mas como é que podem ser, não sendo? Está criado um mundo em transitoriedade, não o da instabilidade do qual nos falava os ‘afiches’ japoneses do XIX, não. Aqui a transitoriedade é perene e insolúvel, porque, aberrantemente, não é uma transitoriedade transitória, por estranho que isto possa parecer, mas uma transitoriedade permanente. Os refugiados são jogados numa não existência que os leva a passar o tempo, e a não ter esperanças, a não ter futuro. E eu não conheço nada mais criminoso do que alguém não ter futuro. E esta que é uma situação provisória, transitória, mas como porém o futuro sempre chega, e como este os encontra sempre na mesma condição, sempre iguais, o futuro é como o presente, e é como se fora o passado, e é também desesperança, porque sempre os encontra sem solução, fica então criada a situação permanentemente sem solução.
Penso que este é o mais grave dos enigmas de nosso tempo.
(*) Para Gaza hoje teríamos de inventar um nível 4 ou 5. E isto mostra como é antigo o problema.